Corpo de(s)graça
"A deformidade do corpo não afeia uma bela alma, mas a formosura da alma reflecte-se no corpo."
Séneca, filósofo (4 a.C - 65 d.C)
É inquestionável o quanto somos influênciados pelos modelos que nos assediam a cada instante. Sendo corpo e mente uma instância una, o corpo é o espelho da nossa mente... do quão sã ou em sofrimento se encontra. o corpo é que paga. (Bem estar é ir para a praia pelo mergulho e não pelo bikini)
O(s) Tempo(s) e o dentro
Como todos bem sabemos e sentimos o tempo de fora não é igual ao tempo que existe dentro de nós. Mas mais do que não ser igual obedece a lógicas radicalmente diferentes.
O tempo de fora é o tempo cronológico, racional, organizador da nossa consciência e da vida em sociedade, onde passado, presente e futuro formam uma sequência unidireccional e unívoca.
Em contrapartida o tempo de dentro é o tempo do inconsciente, onde não há sequência alguma, obedecendo a uma lógica a que Matte Blanco chamou de simétrica, pois nela o passado é igual ao futuro, o grande é igual ao pequeno, o cheio igual ao vazio.
Não deixa de ser curioso observar que quanto maior for o distúrbio psicológico apresentado mais este tempo de dentro se vai sobrepor ao tempo de fora, com prejuízo da adaptação ao mundo exterior. É frequente por exemplo um esquizofrénico não saber em que ano está, pois vive mais virado para as sensações oriundas do seu mundo interno do que para o mundo externo. Ou ver um melancólico desesperadamente agarrado ao passado, ou um hipomaniaco em continua fuga para a frente, sem conseguir sequer viver o presente.
É também a evocação do tempo de dentro que faz a histérica confundir afectivamente o pai com o marido e/ou com o filho. E o obsessivo tentar isolar e/ou anular magicamente actos e pensamentos.
Mas se o tempo de dentro nos convoca continuamente a nossa capacidade de pensar, no sentido de reconhecer, nomear, descodificar e entender a amálgama de sensações e afectos que emergem dentro de nós, é o tempo de fora presente no olhar do(s) outro(s) que nos mostra o que fomos, o que somos e o que poderemos ser, no fundo, que é a passagem do tempo que, ao testemunhar a continuidade da nossa existência e do essencial dos nossos afectos e pensamentos, nos permite afirmar a nossa identidade no mundo.
O corpo de(s)graça
O eu é primeira e acima de tudo um eu corporal, disse sabiamente Freud, querendo afirmar que é do corpo e das suas percepções e sensações que emerge o eu do indivíduo, o qual se vai tornando, ao longo do desenvolvimento, progressivamente mais simbólico.
Quando existem falhas neste processo o eu em vez de consistente e coeso revela-se poroso, como se a pele psíquica se apresentasse com buracos que deixam passar partes do sujeito que se vão depois misturar com partes do objecto gerando movimentos de projeccção e de identificação projectiva patológica onde o individuo se perde e se confunde pois não pode vivenciar-se como separado do outro.
Nestes movimentos caracterizados pelas dificuldades ao nível do simbólico o corpo é vivido na sua concretude, quase sem metáfora, sendo neste registo que enquadramos várias patologias onde o corpo surge agredido, maltratado, como sejam as auto-mutilações, as anorexias/bulimias, algumas doenças psicossomáticas, as toxicodependências, a prostituição, tantas são as formas de vivenciar no corpo as dores da alma.
O corpo é então um continente da raiva e ódio experimentados contra si pela impossibilidade/insuportabilidade de os voltar para fora, para o exterior, eventualmente para o agente agressor, tantas vezes pai ou mãe.
(…) Lembro-me de a ver entrar, meias pretas de rede rotas deixando ver as marcas de agulha das seringas que espetava e a boca suja de chocolate do bolo que tinha entre os dedos. Abusada antes pelo pai dava-se agora ao abuso dos outros, viciadamente, estes podia ela controlar (…)
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