quarta-feira, 6 de julho de 2011
A NATUREZA HUMANA
A NATUREZA DA VIOLÊNCIA UMA ABORDAGEM CRÍTICA
J e a n i n e Ni c o l a z z i P h i l i p p i *
O desencanto do mundo - metáfora moderna por excelência - apreendido na
lenta passagem de uma ordem recebida para um universo marcado pelas produções
humanas, relativizou a idéia de uma determinação transcendente, traduzida em termos de lei absoluta, capaz de conduzir o destino dos sujeitos e de orientar suas trocas
sociais. O ocaso dos ritos divinos permitiu a liberação dos potenciais cognitivos e
propiciou a ressignificação dos mercados simbólicos a partir de operações racionais.
O desenvolvimento das formas operacionais de pensamento delineava a perspectiva de supressão das irracionalidades, mediante a decodificação de princípios
que, libertos do jugo dos mandamentos divinos e das determinações sobrenaturais,
habilitavam-se a oferecer soluções para conter o arbítrio dos poderes instituídos e o
lado sombrio da natureza humana.
A metáfora da luz, emergindo após um longo período de sombra, se impôs
universalmente. Nessa via, a retórica, que desde a filosofia socrática foi concebida
como um antídoto contra a força
1
, traduzia a renúncia da agressividade e o triunfo da
razão. O flagelo cósmico, representado pela ordem antiga, foi contraposto , através
dessa redução simbólica, à emergência de um novo dia marcado pelo advento de uma
ordem “legítima”, cujos enunciados fundadores impunham-se, com força de lei, contra a miséria e a violência.
Mas, apesar da aparente ruptura com a liturgia antecedente que veiculava a
possibilidade da salvação do homem pela religião, os projetos racionais subseqüentes, centrados na concepção de um progresso ilimitado da humanidade, continuaram
investindo na “construção” imaginária de um futuro radiante, projetado em um horizonte sempre distante e fugidio, convertendo-se, por fim, na face secular da idéia de
providência divina. Esse movimento paradoxal - representado por compromissos
emancipatórios que, certamente, contribuíram para reorganizar os níveis de composi-
ção social e de equilíbrio do poder, e pela manutenção operativa de determinadas
“potências obscuras” - não foi, entretanto, capaz de conter a busca, sempre reativada,
da redenção humana deslocada para um topos mítico, situado além da história que
*
Doutoranda em Direito - Universidade Federal de Santa Catarina
1
LACAN, Jacques. Escritos. 17 ed. Trad. Tomás Segovia. México: Siglo Veintuno, 1994. p. 99SEQÜÊNCIA 33
página 69
reedita a utopia arquetípica da edificação do paraíso terrestre.
A crença no progresso linear da humanidade, veiculada nas mais diversas
formas de planejamento racional da ordem social e da produção do conhecimento,
reflete, sobretudo, as falácias dos sistemas onicompreensivos que procuram explicar
a totalidade dos processos sociais e dos papéis dos seus atores. As vias dogmáticas,
que ao longo da era moderna pretenderam traçar os contornos de uma natureza humana eterna e imutável, tradutora da essência dos deslocamentos do sujeito no mundo,
acabaram por gerar, na contraface desse projeto, heteronomias muito mais sutis do
que aquelas que os mentores do novo tempo procuraram exorcizar. De fato, o aperfei-
çoamento dos processos cognitivos não correspondeu a um aprimoramento ético da
humanidade. Os campos de concentração, a ameaça de aniquilação nuclear, o incremento das práticas racistas e discriminatórias, a devastação ambiental conformam
uma rede de violência difusa, propagada em escala mundial, que expõe, às portas do
século XXI, a parcela de sombra que persiste sob a luz de uma razão pensada como
infinita e absoluta.
Hoje, portanto, quando os grandes relatos da modernidade enfrentam as duras réplicas da história, percebe-se que as promessas não cumpridas pela razão estão
sendo , cada vez mais, acolhidas por discursos questionáveis que procuram recolocar
a possibilidade de fundamentação das trocas sociais em bases transcendentes e
dogmáticas. Tal apelo pode, atualmente, ser identificado em projeções que abarcam
desde os fundamentalismos religiosos até a “teologia” do mercado incorporada ao
movimento de uma economia global.
A história, com efeito, não progride de forma linear; ao contrário, ela produz
sentidos marginais que revelam a impossibilidade de classificar a pluralidade das
expressões humanas em padrões exclusivos de representação. Em um momento no
qual as paisagens familiares estão sendo relativizadas, faz-se necessário destacar,
para além das conseqüências discursivas que, ao longo dos tempos, asseguraram a
verdade e a pertinência dos programas oficiais, a implausibilidade da elaboração de
um saber hegemônico sobre a essência do sujeito e da sociedade. A indeterminação
que, segundo Kant, distingue a insociável sociabilidade dos seres humanos
2
não
permite, portanto, a tematização da violência a partir de uma natureza de atos e de
sujeitos que, em virtude de sua especificidade, não se conformam, a priori , a padrões de representação válidos em todo tempo e espaço.
2
BRAZIL, Horus Vital. As ideologias do desejo, utopias e inconsciente político. In: FRANÇA, Maria Inês et alii. Desejo,
barbárie, cidadania, Petrópolis: Vozes, 1994. p. 39página 70 SEQÜÊNCIA 33
Certamente, não se pode englobar o conjunto das ações praticadas por indiví-
duos, grupos e instituições - que veiculam traços implícitos ou explícitos de violência
- em planos precisos de homogeneizações discursivas sustentadas em uma suposta
condição humana inalterável. Os atos violentos - como também aqueles que os executam ou suportam os seus efeitos - não possuem uma natureza determinada. A
violência, conforme argumenta Sônia Felipe, deve ser compreendida, antes de tudo,
como uma ação momentânea ou “... uma série de atos praticados de modo progressivo com o intuito de forçar o outro a abandonar o seu espaço constituído e a preservação da sua identidade como sujeito das relações econômicas, políticas, éticas,
religiosas e eróticas... No ato de violência, há um sujeito ... que atua para abolir,
definitivamente, os suportes dessa identidade, para eliminar no outro os movimentos
do desejo, da autonomia e da liberdade.”
3
Assim, como pensar a ação supressora do
sujeito que suporta o peso da sua inscrição em uma perspectiva diversa das abstrações
mutiladoras e das reduções simbólicas que pretendem identificar os traços violentos
do homem através de determinismos naturais, históricos, econômicos ou sociais?
Essa questão, será trabalhada neste texto em uma perspectiva interdisciplinar
4
que articula um diálogo possível entre a psicanálise e a filosofia política, no qual a
dialética comum às paixões da alma e da cidade será destacada com o intuito de
identificar as tensões que operam no limite entre força e símbolo, esclarecendo alguns elementos pouco problematizados da barbárie
5
. Para além do horror de um corpo lacerado, tal leitura cruzada procura enfatizar outras situações, como a fome, a
miséria, a desigualdade na distribuição dos benefícios sociais que traduzem uma
forma de violência específica ligada à transgressão da lei simbólica, ou seja, o signo
que distingue, metaforicamente, o plano da mediação entre os homens.
A discussão dos impasses gerados no limite entre a ética e a violência é retomada pelo discurso psicanalítico a partir do lugar e função do sujeito, sustentada em
dois pressupostos heterogêneos e conflitivos: o corpo pulsional e a ordem simbólic a . O p r i m e i r o r e m e t e a o t e r r i t ó r i o a n á r q u i c o d a s p u l s õ e s
6
,
3
FELIPE, Sônia. Violência, agressão e força. In: FELIPE, Sônia et PHILIPPI, Jeanine Nicolazzi. O corpo violentado:
estupro e atentado violento ao pudor. Florianópolis: Gráfica/UFSC, 1996. p. 25
4
A proposta interdisciplinar lançada neste trabalho não implica a identidade do objeto teórico específico a cada campo de
conhecimento envolvido nas articulações que se seguem, mas uma interpretação diferenciada das questões referentes à ética
e à violência, recortada a partir da operacionalização de conceitos fundamentais das disciplinas eleitas nesta proposta de
leitura cruzada.
5
LACAN, op. cit., p. 114
6
As pulsões não devem ser consideradas como força simbólica ou psíquica, mas como uma via que se abre marcando as
fronteiras que distinguem a ordem da natureza (corpo) do universo cultural. BIRMAN, Joel. Psicanálise, ciência e cultura.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. p. 125SEQÜÊNCIA 33
página 71
ou seja, das forças parciais persistentes na exterioridade do psiquismo humano, enquanto o segundo funda a constituição do ser desejante no campo do Outro
7
, distinguindo um eixo alteritário sem o qual a sexuação
8
do corpo e o advento do sujeito
seriam impossíveis. Essa divisão estrutural
9
revela, por sua vez, a incompletude de
um ser que, para se constituir, necessita apelar a um Outro que o redimensiona enquanto criação do desejo e não da necessidade.
Para a teoria psicanalítica, contudo, enfatizar o desejo humano não significa
... discipliná-lo nem tampouco fazer dele - da sua satisfação - uma
apologia estética. Não se trata de uma filosofia da vida nem de uma
tomada de posição nas alternativas da moral vigente. Há uma mutação
da problemática. O que a invenção de Freud articula para o sujeito é
um d i s p o s i t i v o o n d e , ‘ s e e l e q u i s e r ’ f a z e r a e x p e r i ê n c i a d a s u a
incompletude e de sua exclusão do saber, terá a possibilidade de eventualmente tirar algumas conseqüências e advir onde o seu gozo o fixav a . ”
1 0
Ao indicar o ponto impossível do gozo, inscrito em um momento de suspensão no qual a lei simbólica emerge como mediação entre a força e a representação, a
experiência analítica destaca um instrumento teórico interessante para orientar incursões que extrapolam o campo da clínica, na medida em que remete o ser humano ao
confronto com o limite das suas possibilidades, no qual a ética e a violência se
impõem indicando o traçado dos possíveis caminhos de uma existência complexa e
precária.
Força, símbolo e lei. Esta tríade, que Freud destaca na estruturação subjetiva do
ser humano, pode ser igualmente identificada na teoria contratualista - marca indelével
da história das organizações políticas modernas -que pretendeu delimitar as condições
de possibilidade do pacto social mediante a explicitação de princípios legitimadores do
poder civil. Quando a explicação acerca da origem divina das normas destinadas
7
O Outro, nesse sentido, é anterior ao sujeito. Mesmo antes de nascer, o ser humano já faz parte de um mundo de palavras
que o distingue enquanto lugar do desejo. Esse universo de relações que o precede fala dele de inúmeras maneiras através
de toda uma história de gerações e lendas familiares. Esse mar de significações no qual o sujeito é mergulhado e que traduz
o lugar no qual a linguagem se inscreve e para o qual o indivíduo se dirige para conferir autoridade ao seu discurso, é
designado por Lacan como Outro. Universo de representações de coisas e de afetos, o vasto domínio do inconsciente se
reatulaizará sempre em relação à palavra dirigida a esse Outro, a “outra cena” que encerra em si todo mistério e heterogeneidade
do ser falante.
8
É importante ressaltar que o sexual para a teoria psicanalítica não se reduz ‘... às necessidades orgânicas da reprodução;
refere-se mais às condições de gozo das quais apenas uma das conseqüências diz respeito à continuação da espécie.”
POMMIER, Gérad. Freud apolítico? Trad. Patrícia Cleitone Ramos. Porto Alegre, Artes Médicas, 1989. p. 15
9
A estrutura pode ser definida “... como um conjunto aberto em relação ao qual se dá a posição do sujeito. Conjunto de que?
Conjunto de signos da linguagem, pode se chamar Outro ou ainda mãe. Como qualificar os signos da linguagem que
constituem esse conjunto? Antes de tudo, pela característica que nenhum deles pode definir a si mesmo. Cada um deles
remeterá a um outro. Deste modo, tal conjunto merece com razão ser qualificado de aberto.” Idem, p. 40
10
ROCHA, Antônio Carlos. O discurso analítico: obstáculos à sua transmissão. In: FRANÇA, op. cit., p. 90página 72 SEQÜÊNCIA 33
a reger o gênero humano começou a perder prestígio, foi pensada a ficção do contrato para explicar o momento estruturante do laço social, que colocou um termo nas
condições primevas do convívio humano - caracterizadas pelo estado de natureza, no
qual todos possuíam o direito sobre todas as coisas, inclusive o corpo do outro - e
estabeleceu, na forma da lei, os limites da sociabilidade . A condição natural de liberdade absoluta foi, então, substituída por um estado social de direitos e deveres que
igualava os contratantes. Para Hobbes, o medo da morte fez com que os indivíduos
constituíssem uma mediação, um poder simbólico, comprometido com a garantia da
paz e da segurança contratadas no pacto originário. Nesse sentido, a perda de liberdade sofrida pelo homem na passagem do estado de natureza para a sociedade justifica-se em nome da obrigação do soberano em preservar uma sociabilidade segura
11
.
Dessa forma, para impedir que a resolução dos conflitos fosse dada exclusivamente
pela utilização da violência e que o poder continuasse concentrado nas mãos dos
mais fortes, o contrato foi articulado como uma proposta de estruturação de um
espaço igualitário, representativo dos interesses nele implicados, indistintamente.
No transcorrer desse processo, a força bruta - signo da dominação peculiar ao estado
de natureza - converteu-se em lei.
Essa lei, apesar de não possuir uma forma unívoca de expressão, traduz, em
suma, o fundamento ético de uma sociedade e os seus interditos fundamentais. Para
Kant, a lei não é algo transcendente. A indeterminação natural dos homens os distingue não apenas como criaturas da necessidade mas, sobretudo, como seres da liberdade, dotados de uma vontade que os coloca na posição de legisladores. Os humanos, portanto, segundo Kant, são os únicos animais que vivem sob a representação
de leis, ou seja, colocam as suas próprias regras e as seguem por dever. Nessa perspectiva, a abertura incerta, ditada pelas múltiplas possibilidades da existência humana, articula-se com ideais e valores que permitem ao sujeito esboçar os contornos de
um destino comum mediatizado por uma lei universal que os iguala em dignidade.
Assim, o que se coloca em questão é justamente o sentido dessa lei, a sua
dimensão simbólica. Hobbes -trabalhando a inserção do homem em sociedade -
11
Nesse sentido, é importante destacar que as transgressões cometidas pelos súditos seriam, então punidas com as leis
ditadas pelo soberano; mas, quando o não cumprimento do contrato parte do soberano, a questão fica mais difícil de ser
esclarecida. Em um primeiro momento do pensamento contratualista - Hobbes - , não se admitia a hipótese de injustiça
cometida pelo soberano em virtude da sua própria natureza. Todavia, no transcorrer do desenvolvimento dessa corrente da
filosofia política moderna, tal possibilidade foi admitida desde que a paz e a segurança dos indivíduos estivessem sendo
ameaçadas, pois esse fato , em si mesmo, denuncia a falência do soberano no cumprimento dos deveres que lhe competem. Fica
assim subscrita a limitação da onipotência, uma vez que o contrato não é passível de ser rompido apenas por uma das partes,
a mais “sensível” às paixões, isto é, os súditos; ele pode, também ser quebrado a partir do pólo responsável por sua
vigilância na medida em que esta parte contratante é igualmente composta por homens, sujeitos às mesmas paixões que
animam os súditos.SEQÜÊNCIA 33
página 73
e Freud - pesquisando os embates do sujeito consigo mesmo
-destacaram a importância da lei na organização social e na estruturação subjetiva individual. Para eles, a lei representa um limite, não meramente repressivo, que
possibilita a emergência do sujeito e a formação do cidadão. Hobbes, como foi visto,
sustenta a inscrição da lei a partir do temor da injúria ao corpo. Freud, na sua leitura
desse argumento hobbesiano, traduz o medo da morte em termos de exigências
narcísicas - ligadas ao horror diante do esfacelamento da imagem e do desaparecimento do desejo - que invocam a submissão da subjetividade à lei simbólica que
marca o limite entre a força e a representação.
Todavia, esses autores estavam igualmente conscientes de que a atitude dos
homens frente à lei não é indiferenciada; sabiam, portanto, que não há nada que
assegure um respeito idêntico, por parte de todos, às normas estabelecidas, uma vez
que estas são postas e mantidas, em última instância, em razão da sua própria transgressão. Nesse sentido, então, Hobbes afirma a necessidade da espada para conter
as violações do contrato. Freud, entretanto, argumenta que o temor da sanção não é
suficiente para coibir as pulsões dos sujeitos e esgotar os (des)caminhos do desejo.
Tal dedução remete à necessidade de uma negociação incessante entre os humanos,
em relação à perda da plenitude do gozo, e expõe o equilíbrio precário estabelecido
entre as forças equivalentes no registro simbólico que pode ser rompido a qualquer
momento.
12
A descrição do sujeito elaborada ao longo da teoria psicanalítica enuncia a
impossibilidade de representá-lo como uma interioridade absoluta na medida em que
a subjetividade remete sempre a um sentido de exterioridade, a uma instância mediadora que articula as escolhas do sujeito e as relações sociais. A ordem simbólica,
portanto, contrapõe-se ao sistema das pulsões operando como “instância legiferante”
que busca regulamentar a anarquia daquelas forças constantes que imprimem uma
marca característica ao psiquismo humano. Todavia, apesar desse sinal sensível, a
psicanálise revela, igualmente, a persistência de algo que, a partir do corpo, não se
inscreve como sujeito e resiste à absorção pelo Outro, denunciando uma desarmonia
constitutiva das relações intersubjetivas caracterizadas pelo investimento permanente em distinguir uma diferença face à universalidade do espaço social.
13
O s e r h u m a n o , d e f a t o , n ã o “ r e c o n h e c e ” f a c i l m e n t e o s o b s t á c u l o s
12
BIRMAN, Joel. Retórica e força na governabilidade - sobre a política e o poder no discurso freudiano. In: FRANÇA, op.
cit., p. 74
13
BIRMAN, op. cit., p. 127página 74 SEQÜÊNCIA 33
impostos à fruição do seu gozo
14
. O engano narcísico que se instaura a partir do
reflexo da imagem do Outro indica, antes de tudo, que o desejo do homem é o desejo
do Outro, ou seja, é como Outro que ele deseja. Esse momento da estruturação subjetiva do sujeito, explica Lacan, é marcado pela primeira captação imaginária na qual
se delineia a dialética das identificações relacionadas ao fenômeno da percepção
precoce, na criança, da forma humana. O júbilo triunfante do pequeno ser diante da
imagem especular evoca o dinamismo afetivo centrado em uma imago, uma unidade
ideal sumamente valorizada em virtude da desolação que marca os primórdios da
existência humana. Assim, é nessa espécie de encruzilhada estrutural que a teoria
lacaniana procura situar as discussões em torno da agressividade humana, implicada
com a formação do ego do sujeito e a eleição dos objetos significativos ao desejo.
Como adverte Lacan, a
... relação erótica na qual o indivíduo se fixa em uma imagem que o
aliena de si mesmo, é a energia e a forma onde toma sua origem essa
organização passional a qual se chamará eu. Essa forma se cristalizará, com efeito, em uma tensão conflitiva interna do sujeito, que determina o despertar do seu desejo pelo objeto do desejo do outro: aqui o
concurso primordial se precipita na competição agressiva, e dela nasce a tríade do próximo, do eu e do objeto, que estilhaçando o espaço da
comunicação especular, se inscreve no sujeito segundo um formalismo
própr io. . .”
15
A agressividade, nesse sentido, configura uma dimensão estrutural de um ser
que se constitui através da miragem do outro, e, por isso mesmo, não pode ser reduzida a um resíduo eliminável da estrutura do sujeito, produzido a partir da frustração
de uma necessidade qualquer, que levaria o indivíduo a uma “regressão” e, dessa
forma, à agressão. Ao contrário, ela traduz uma tendência correlativa à identificação
narcísica que determina a estrutura formal do ego humano.
De fato, explica Freud, os homens não são criaturas gentis que, no máximo, podem defender-se quando atacadas, mas seres aos quais os dotes pulsionais lhes imprimem uma significativa
cota de agressividade, cujos efeitos podem ser apreendidos na apropriação que fazem dos outros,
utilizando-os não apenas como um ajudante ou objeto sexual, porém como um outro
14
O gozo, segundo Nasio, pode ser entendido como “... uma moeda que tem duas caras: a cara da dor e a cara da satisfação.
O gozo é tanto satisfação como dor... Uma dor e uma satisfação parcial para evitar uma dor maior... um gozo parcial para evitar
um gozo maior... Para Freud, o prazer é a diminuição da tensão. O prazer é temperar a tensão e, justamente aquilo que ameniza
a tensão é o que coloca uma barreira ao gozo... O prazer é baixar a tensão; o gozo é maximizar a tensão. O gozo é o ponto máximo
em que o corpo é posto à prova. Quiçá o exemplo mais sensível de que o corpo é posto à prova é a dor.” Pode-se dizer então...
“o prazer é a barreira do gozo e o desejo é um desejo que se satisfaz parcialmente com objetos do prazer”. NASIO. Juan D.
El magnifico niño del psicoanalisis. Buenos Aires; Gedisa, 1988. p. 21/22
15
LACAN, op. cit., p. 102SEQÜÊNCIA 33
página 75
qualquer sobre o qual a descarga pulsional efetiva-se de diversas formas, como na
exploração do trabalho, nas humilhações, torturas e mortes. A agressividade é intrínseca às funções do eu do homem, ou seja, uma estrutura distinguida por uma tensão
agressiva, por uma intenção de agressão.
Tensão no sentido de oposição, já que o outro sempre se opõe, disputa
o mesmo lugar do eu. Para o eu humano só existe um lugar possível: se
eu não estou certo, se não ocupo o lugar daquele que está certo, então...
estou errado e é o outro quem está certo; para o eu, é como se o outro
tivesse se apropriado desse lugar... Só há um lugar buscado pelo eu,
um lugar onde habita a perfeição, a mesma perfeição experimentada
quando no estádio do espelho, uma imagem total, completa, perfeita
vem unificar uma experiência fragmentária... Tensão também no sentido de rigidez, porque essa tensão fria, paralisante, é uma espécie de
morte que coloca o eu no constante competir com seres imaginários...
16
Essa especificidade da condição humana reflete-se, por sua vez, no movimento pendular , na oscilação entre o amor e ódio, que distingue a relação dos sujeitos
com os semelhantes. O outro é amado na medida em que seu olhar oferece um suporte
à imagem do corpo; e odiado porque é percebido como uma totalidade depositária de
um gozo que escapa ao próprio sujeito. As trocas humanas comportam, com efeito,
uma certa marca persecutória: o outro sempre porta consigo uma promessa de amor
ou uma ameaça possível que evoca no indivíduo o drama inicial da sua existência. O
caos primordial - projeção dos medos, dúvidas e ruína possível do sujeito face a um
outro que pode se revelar como perseguidor e malfeitor - permanece presente de
maneira alucinante ou encantadora em cada gesto e pensamento humanos. O homem,
portanto, está constantemente confrontado com a possibilidade de desintregar-se a
qualquer momento, desde que a miragem fantasmática do carrasco converta-se em
“realidade”.
A psicanálise, entretanto, diferencia para além das especificidades do eu ideal,
um outro topos, o ideal do eu como função regulamentadora das identificações egóicas
que invoca um “terceiro lugar” - a lei e os valores culturais - a partir do qual o sujeito
pode encontrar uma outra via para expressão da sua agressividade.
17
Enquanto no ego ideal o eu se coloca como sendo o próprio ideal, não
existindo, então, qualquer instância transcendente no estabelecimento do
ideal; no ideal do ego o eu se submete a um outro valor que funciona como
mediação entre os sujeitos. O que implica dizer que a alteridade como
valor encontra-se apenas a nível de ideal do ego onde existe efetivamente
o registro da intersubjetividade, o que não ocorre no ego ideal.”
18
16
GOMES, Mauro Hermes. Agressividade, violência. Florianópolis: mimeo, 1995. p. 4/5
17
Idem, p. 6
18
BIRMAN, op. cit., p. 132página 76 SEQÜÊNCIA 33
Pode-se dizer, enfim, que o ideal do eu, conecta a subjetividade individual com
a normatividade cultural, ligada, desde o início da aventura humana, à representação
da lei que distingue os limites traçados entre a força e o símbolo, dois ângulos de um
problema que marcou a filosofia política desde Hobbes e que continua a colocar, na
atualidade, os termos básicos sobre os quais a modernidade se constituiu.
Neste final de século, a emergência de expressões renovadas de racismo, nacionalismo e guerras, expõem à luz do dia o potencial agressivo inerente ao ser humano
que o compele, em situações propícias, a explorar, roubar, escravizar e matar o seu
semelhante, indicando, portanto, que os objetivos emancipatórios que caracterizaram o percurso dos ocidentais modernos - traduzidos por ideais de igualdade, progresso e liberdade - não foram suficientes para imunizar a condição pulsional do
sujeito...
Na sociedade brasileira, por exemplo, o assassinato cruel de crianças, jovens
e adultos praticado em proporções assustadoras, como também as situações extremas de fome e de miséria, constituem emblemas significativos da complacência dos
homens face ao horror. A destruição, segundo Jurandir Freire Costa, “... às vezes
pode tornar-se o único objetivo capaz de empolgar povos e indivíduos. O gozo com
a morte, o sofrimento e a degradação de si ou do outro é uma das características da
e spé c i e humana ”
19
, f a c i lment e pe r c ebida em s i tua çõe s hi s tór i c a s na s qua i s o
relativismo ético adquire um caráter próximo do macabro.
Em um contexto no qual a apropriação, a pilhagem e até mesmo a dizimação do
outro convertem-se em algo banal, o contrato cede lugar a uma condição de guerra,
na qual predomina a lei que impõe aos homens o dever de “levar vantagem em tudo”.
Ora, apenas “eu” posso levar vantagem em tudo, mas sempre à custa do outro. Assim, como toda lei que se preze, esta se impõe, igualmente, de forma universal.
20
Nesse processo, os fraudadores do INSS, os banqueiros corruptos, os assassinos dos
sem terra, os exterminadores de plantão, os parlamentares que trocam seus votos por um
favor qualquer , dentre outros, passam, então, a constituir uma “nova” normalidade que,
aos poucos, vai conquistando o respaldo legal. Nesse sentido, alerta Maria Rita Kehl,
que “... se existem marginais hoje no Brasil, talvez seja gente sem charme e sem carisma.
Como os professores da rede pública, que continuam ensinando coisas com que ninguém
mais se importa, a troco de salário nenhum. Como esses homens que puxam pelas ruas
carroças com jornal velho, num simulacro de trabalho digno, com que, por algum
19
COSTA, Jurandir Freire. O Laboratório de assassinos. In: Folha de São Paulo, São Paulo, 31/03/96. p. 5-3
20
GOLDENBERG, Richard. Uma nação de espertos. In Folha de São Paulo, São Paulo, 21/04/96. p. 5-3SEQÜÊNCIA 33
página 77
motivo obscuro, eles preferem se identificar. De marginais e trabalhadores, o Brasil
ainda está cheio e eles vão... morrer anônimos sem ter tido direito aos seus 15 minutos... de cidadania.”
21
Certamente, o futuro não pertence a ninguém, mas pode-se argumentar com
Freud que, enquanto os homens continuarem incapazes de perceber a virulência das
práticas mortíferas que se escondem sob a máscara das ilusões narcísicas, não haverá possibilidade de pensar um contrato efetivo, para além das regras que determinam
a sua encenação...
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