sexta-feira, 25 de junho de 2010
MEMÓRIA OU SERÁ MEMÓRIAS..........
Artigos
edição 140 - Setembro 2004
O mosaico das memórias
por Sidarta Ribeiro
Instituto de Arte, Chicago
Georges Seurat, Um domingo na grande jatte, 1884
Coletamos ao longo da vida um imenso repertório de memórias em nossas mentes. Pessoas, lugares, eventos, estórias, habilidades variadas e muitos detalhes triviais. Como é possível seguir acumulando informações por tanto tempo, sem confundi-las ou esquecê-las no caminho? Como é possível evocar a textura fina dos fatos passados, muitas décadas depois de sua ocorrência? Que mecanismos permitem-nos modificar lembranças antigas de maneira seletiva, sem causar danos às lembranças associadas? De que matéria resistente e plástica são feitas as memórias?
Sabemos hoje que as memórias residem na vasta rede de células excitáveis que compõem o sistema nervoso, os neurônios. Cada neurônio se interliga a milhares de outros por intermédio de microestruturas chamadas sinapses. São estes minúsculos pontos de aproximação inter-celular que permitem a propagação em cascata da excitação neuronal. Embora a distância sináptica entre duas células seja muito pequena, raramente verifica-se um contato físico direto.
A grande maioria das sinapses apresenta uma separação celular da ordem de 20 nanômetros. Nestes casos, a transmissão da ativação de uma célula a outra é unidirecional e baseia-se na difusão de neurotransmissores, moléculas liberadas por um neurônio pré-sináptico capazes de ativar receptores químicos na célula pós-sináptica. Dependendo dos tipos de neurotransmissores e receptores envolvidos, tal processo pode determinar tanto a excitação quanto a inibição das células pós-sinápticas. Qual é a relação entre a transmissão sináptica e a formação de memórias?
Quando uma sinapse é estimulada com alta frequência, observa-se um aumento subsequente de sua eficácia de transmissão, isto é, a célula pós-sináptica passa a responder de forma aumentada a um estímulo pré-sináptico. Por outro lado, uma estimulação de baixa frequência resulta na redução prolongada da transmissão sináptica. Tais efeitos, conhecidos respectivamente como potenciação e depressão de longo prazo, conferem às sinapses uma memória fisiológica dos eventos recentes. A potenciação de longo prazo permite que sinapses muito utilizadas se tornem mais fortes ao longo do tempo. Da mesma forma, a depressão de longo prazo enfraquece sinapses pouco utilizadas.
Recentemente demonstrou-se que a estimulação de sinapses isoladas causa um fortalecimento local, sem alteração das sinapses vizinhas (Matsuzaki et al., 2004, Nature 429: 761-766). O truque por trás desta façanha tecnológica foi a utilização de neurotransmissores sintéticos que se tornam ativos apenas quando iluminados por lasers de alta precisão. Este método revelou que a estimulação de sinapses isoladas causa uma expansão persistente e tópica do volume pós-sináptico. Esta expansão converte sinapses imaturas, pequenas, fracas e instáveis em sinapses maduras, grandes, fortes e estáveis. Assim, a estimulação de redes neuronais específicas causa modificações morfológicas ao longo de toda a trajetória de ativação sináptica, resultando na estocagem duradoura dos padrões de excitação neuronal aos quais chamamos memórias. Considerando que o cérebro humano contém cerca de 100 bilhões de neurônios, que cada neurônio tem cerca de 10 mil sinapses, e que cada sinapse pode ser potenciada ou deprimida com várias magnitudes diferentes, não é difícil conceber que nossa estupenda capacidade de memorização reflete o pontilhado combinatorial da codificação sináptica. Que aspecto têm as memórias? Se fossem as telas de um pintor, este seria Seurat.
Sidarta Ribeiro é Ph.D. em neurobiologia pela Universidade Rockefeller e pesquisador do Instituto Internacional de Neurociências de Natal (IINN). Fez pós-doutorado na Universidade Duke (2000-2005) investigando as bases moleculares e celulares do sono e dos sonhos e o papel de ambos no aprendizado.
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