A CONSTRUÇÃO DO CORPO E SEUS DESTINOS
Uma visão Psicanalítica
Yara Dalva Simão
“Suportar as verdades desnudadas, e enfrentar as
circunstâncias com calma absoluta,
eis o ápice da soberania.”
Ernst Jones
INTRODUÇÃO
No reino animal, o ser humano constitui a espécie que apresenta o maior grau de complexidade na escala evolutiva. Ele ocupa uma posição especial na natureza, tem sua inteligência e sua capacidade de raciocínio desenvolvidas, faz uso da linguagem articulada e é o que nasce em maior estado de desamparo e dependência. Por causa dessa dependência, o bebê humano precisará, desde o primeiro momento de vida, de cuidado e proteção. Esses virão pela relação do bebê com um adulto, mais especificamente com a mãe, com quem será estabelecida uma importante relação afetiva. A alimentação e os cuidados com o corpo do bebê serão os elementos responsáveis pelas suas primeiras experiências de prazer e desprazer.
Aconchegado no colo materno e levado ao seio para se alimentar, mais que saciada a fome, ele experimentará um momento pleno de satisfação que, a partir de então, tentará repetir inúmeras vezes, contudo sem jamais consegui-lo. Aquele primeiro momento único é irremediavelmente perdido é denominado por Freud de primeira experiência de satisfação.
A privação, oriunda dessa experiência, marca-o então com falta, a incompletude e abre as portas do desejo humano. Ele tentará reviver essa primeira vivência de satisfação por meio de alucinação. Dessa forma instaura-se a matriz do psiquismo humano, cuja evolução e desenvolvimento serão sempre marcados por percalços e vicissitudes.
É na lida com o filho que a mãe, pelo ritual de amamentação, higiene, limpeza, carinho e brincadeiras, começará a marcar, a pontuar o corpo da criança, dando suporte ao desenvolvimento psicossexual, que resultará, entre outras coisas, na constituição do corpo erógeno.
Corpo erógeno é o corpo investido libidinalmente, sabendo-se que a libido é a energia da pulsão sexual.
O desenvolvimento psicossexual humano se dá no entrelaçamento das fases oral, anal, fálica e genital, havendo uma predominância na organização da libido, característica a cada uma delas. (É importante não considerar esse acontecimento como uma sucessão gradativa e rígida, onde as etapas seriam excludentes umas das outras.) Nesse movimento constitutivo, a relação com a mãe é da maior importância, porque é ela quem fornece ao filho informações que permitirão a construção, pela criança, da imagem e percepção de si mesma. As palavras ou os significantes virão sempre carregados de conotação (fornecidas e interpretadas pela mãe e pela criança).
Na seqüência evolutiva do desenvolvimento psíquico da criança, alguns momentos se destacam pela importância de suas conseqüências. A capacidade de representação, adquirida com a aquisição da linguagem e do pensamento, é um desses momentos.
A criança aprende a representar o que vê em imagens e o que ouve em palavras. A representação do que é visto é registrada em imagens; quando esses registros acontecem muito precocemente são denominados de traço mnésico, que posteriormente poderão se articular com representação de palavras.
A possibilidade para a criança de representar psiquicamente o que vê e o que ouve lhe permitirá a conquista consecutiva da simbolização. A simbolização é a representação indireta de uma idéia, de um pensamento, de um desejo. É a aquisição dessa possibilidade que permitirá ao ser humano, entre outras coisas, lidar com a angústia por meio de representantes simbólicos que a abrandem ou dissipem. Exemplificando, se a presença materna significa amparo e proteção, sua ausência mergulha o bebê em angústia. Ele, então, inventa um representante ou substituto para sua mãe, com que lidará para aplacar sua angústia na falta dela. Winnicott, psicanalista e pediatra inglês, denomina essa primeira criação infantil de "objeto transicional". A chupeta, a ponta do dedo, a beiradinha da fronha, a dobrinha do cobertor, com as quais a criança se apega para dormir, constituem a representação simbólica da ausência da mãe.
Para que ocorra essa substituição, é feita uma passagem que implica em um deslocamento e uma metáfora.
Adquirida essa capacidade, deslocamentos e condensações, metáforas e metonímias serão recursos sempre utilizados para lidar com a angústia e os conflitos psíquicos. Os sintomas neuróticos serão oriundos desse movimento. Nesse sentido, portanto, a neurose é uma conquista positiva, constituindo-se em uma saída na luta do conflito psíquico. O maior ou menor grau de sucesso nessas passagens serão responsáveis pela melhor ou pior resposta do indivíduo em seu comportamento e em sua relação com as pessoas e com a vida.
MEDICINA E PSICANÁLISE
De maneira geral, quando alguém adoece ou é acometido de qualquer dor física, procura um médico. É examinado, procura-se fazer um diagnóstico e é proposto um tratamento. A cura é a expectativa e a tentativa de ambas as partes. O médico examina o indivíduo lidando com seu corpo biológico, de carne e osso, organismo vivo onde a harmonia da saúde foi quebrada.
Ele tem acesso a inúmeros recursos, que lhe possibilitam uma maior aproximação do diagnóstico, como radiografias, exames laboratoriais, ultra-sonografias, endoscopias, cintilografia, isótopos radioativos, tomografia computadorizada, ressonância magnética etc.
Foi o diagnóstico, outros recursos são usados para o tratamento, que incluem os tratamentos clínicos, os tratamentos cirúrgicos convencionais, os tratamentos cirúrgicos com auxílio de fibra ótica, laser, os tratamentos radioterápicos, quimioterápicos, todos eles contando sempre com um arsenal de drogas e novas tecnologias que, a cada dia, avançam mais na busca do sucesso do tratamento das doenças, possibilitando a recuperação da saúde do paciente.
Há, todavia, um segundo tipo de paciente. Sua dor e seu sofrimento são de outra ordem. Fobias, inibições, depressões, angústias, são de modo geral, as queixas mais comuns de quem procura a psicanálise. São indivíduos que trazem, junto com o sofrimento psíquico, questões existenciais com as quais gostariam de lidar. São atendidos pelos psicanalistas e a psicanálise pode ser indicada e praticada como possibilitadora de diminuir o sofrimento e conduzir o indivíduo a responder algumas questões que ele faz sobre si mesmo e sobre sua relação com a vida.
Grande parte do primeiro tipo de pacientes, aqueles que sofrem de males físicos e buscam a cura na medicina, fica satisfeita. Também um número considerável de pacientes do segundo tipo, que recorre à psicanálise como tentativa de ajuda consegue um resultado satisfatório.
Portanto, a medicina, com seus milhares de usuários, vem cumprindo bem seu papel científico e seu compromisso social. A psicanálise, bem mais restrita quanto ao seu número de praticantes e diferente em sua proposta final, sendo marginal e por isso ainda mal compreendia, por sua vez corresponde aos princípios teóricos e éticos do seu genial criador, Sigmund Freud, 100 anos após sua criação.
PSICOSSOMÁTICA
Um terceiro tipo de paciente é responsável pelo surgimento da psicossomática, uma nova abordagem médica. São pacientes que não encontram lugar definido junto aos médicos, nem junto aos analistas.
Por quê Porque nem o atendimento médico convencional, nem a psicanálise clássica, são de grande valia.
O que pretende, então, a psicossomática, e qual é o interesse da psicanálise nessa questão?
Aumenta a cada dia o número de pacientes nos consultórios de psicanálise encaminhados por médicos, querendo se tratar de doenças de fundo psíquico.
Tem sido comum, também, o irrompimento de fenômenos psicossomáticos de pacientes em análise. Esses fatos fazem com que a psicanálise se interesse cada vez mais pelo mecanismo responsável pelo desvio para o corpo do que deveria ser da ordem do psicológico.
Se a psicanálise se interessa por tudo que diz respeito ao humano, sem colocar barreira demarcando o que é normal e o que é patológico, buscando as determinações dos atos e motivações inconscientes, o adoecer não pode estar fora dos interesses dessa disciplina.
Cabe à medicina psicossomática explicar a maneira como o corpo responde a partir de conflitos rejeitados pela consciência.
Cabe ao psicanalista levar o paciente a dar nome à lesão ou à doença segundo seu código pessoal. O paciente precisa encontrar uma palavra que simbolize algo representado na lesão. Se essa lesão ou doença não puder ser traduzida ou simbolizada, não interessa à psicanálise sua explicação.
O conhecimento da origem e da causa dos fenômenos psicossomáticos facilitaria, para médicos e psicanalistas, o estabelecimento do campo de ação e do tipo de intervenção de cada profissional, respectivamente.
O ponto comum entre médicos psicossomáticos e psicanalistas está nos pacientes, que os procuram em função de um sofrimento.
Todavia, as duas disciplinas têm visões, abordagens e propostas opostas. A medicina psicossomática pretende a cura visando ao indivíduo como um todo, em que as partes se completam.
Um dos pilares da teoria psicanalítica é a incompletude do indivíduo, que já nasce marcado pela falta, daí sua condição de desejante. A psicanálise faz dessa incompletude sua possibilidade de trabalho.
Essa oposição, porém, não impede que psicossomáticos e psicanalistas tentem aproximações conceituais e práticas que possibilitem um trabalho conjunto.
A resposta positiva, já constatada, da psicanálise no tratamento de fenômenos psicossomáticos, não é, entretanto, exclusiva dessa abordagem; inúmeras outras práticas psicoterápicas também têm obtido resultados favoráveis. Isso nos autoriza a admitir um lado de sugestionabilidade nessas manifestações no corpo, o que reforça seu aspecto psíquico, justificando o interesse da psicanálise.
CORPO E IMAGEM CORPORAL
Partindo do princípio de que o objetivo de Freud foi demonstrar a íntima estrutura de uma perturbação neurótica e a determinação de seus sintomas, a suspeita de que a manifestação desses sintomas possa ocorrer no corpo nos parece, cada dia mais, uma hipótese viável. Obviamente que com uma estrutura diferente do sintoma neurótico.
O que será, então, que levaria alguém a substituir um sintoma neurótico por um fenômeno psicossomático?
Se o corpo é a estrutura física do homem, é também o lugar da vida e da morte. A lesão no corpo é um ataque à imagem corporal e o indivíduo se vê violado em seus direitos do corpo que tem e do corpo que é.
A medicina lida com o corpo que temos; corpo que se movimenta, objeto de julgamento e valorização; corpo mensurável, comparável, de competição.
A psicanálise lida com o corpo que somos; é o nosso vivido. Corpo carnal que não é apenas um instrumento, mas também um lugar. Lugar pelo qual o mundo atinge um mistério; aquilo que cada um de nós é. Não é um corpo que pede prótese, mas que pede significação e sentido. Corpo que habita a linguagem; lugar do desejo e lugar do gozo.
Cada um de nós possui um registro psíquico do próprio corpo e qualquer lesão ou mutilação desse corpo é vivida também em nível psíquico.
A criança recém-nascida é inicialmente um ego corporal que se relaciona com o mundo por meio de sensações e percepções. Os registros dessa relação constituirão pequenos núcleos de ego rudimentar que vão se integrando lentamente pela experiência cotidiana do bebê. Essa interação resulta das descobertas parciais que ele vai fazendo de seu corpo, mãos, pés, pernas, barriga, genitais, somadas à percepção que ele tem da forma como a mãe o vê e como ele se relaciona com ela. Gradativamente, em função do seu desenvolvimento físico e emocional, somados à sua interação com o meio ambiente, esses registros irão "tomando corpo", na acepção literal do termo, isto é, vão constituindo a representação psíquica que a criança (e posteriormente o adulto) terá de si mesma, formando sua primeira identidade, à qual denominamos imagem corporal. Essa representação psíquica está ligada à qualidade da relação da criança com seu mundo e seu corpo e, em função disso, estará melhor ou pior registrada, mais forte ou mais frágil. Essas nuanças têm suas raízes oriundas das experiências mais arcaicas vividas pelo bebê e sua mãe. Isso significa que cada órgão ou membro representado psiquicamente é investido de libido e passa a fazer parte de um código pessoal e particular de significação.
CORPO SIMBÓLICO, CORPO IMAGINÁRIO, CORPO REAL
O campo da psicanálise é delimitado pela linguagem e pelo sexo. Isso permite estabelecer dois estatutos do corpo: o corpo falante e o corpo sexual, ou que goza.
J.D. Násio define o corpo falante como "o corpo que interessa à psicanálise, não por ser um corpo de carne e osso, mas um corpo tomado como um conjunto de elementos significantes". Corpo falante é, portanto, aquele onde os significantes falam entre si.
O corpo simbólico é o conjunto ou corpo de significantes que insere o indivíduo numa ordem simbólica, preestabelecida e veiculada pela linguagem. As leis da cultura e da linguagem onde o indivíduo se insere são designadas pela ordem simbólica. Nesse sentido, o simbólico é a cultura, que é anterior ao indivíduo. A articulação cultura/indivíduo é fundada e constituída pela dimensão simbólica.
Para Lévi-Strauss, "toda cultura pode ser considerada como um conjunto de sistemas simbólicos, no topo dos quais se situam a linguagem, as regras matrimoniais, as relações econômicas, a arte, a ciência e a religião”.
O corpo imaginário é a imagem externa que desperta o sentido em um indivíduo. A imagem que eu tenho do meu corpo me foi dada a perceber a partir de fora, vista pelo outro. Portanto, eu me vejo como fui vista. Minha imagem foi projetada e me foi devolvida. Preciso, então, do outro para me constituir enquanto imagem e para ter acesso à linguagem e aos significantes.
O corpo real é o lugar do gozo. Gozo, em psicanálise, significa dor, desgaste, gasto, exigência. Corpo real é sinônimo de gozo. A lesão psicossomática traz sempre um traço do real.
O campo da psicanálise está delimitado pela articulação do simbólico, do imaginário e do real, que nunca se apresentam isoladamente por estarem atravessados uns pelos outros.
Há uma disjunção entre o corpo com que a medicina lida e o corpo que interessa à psicanálise. Eles pertencem a campos diferentes. O campo da medicina é da ordem da objetividade. Se o cliente reclama do braço, da perna ou do tumor, o médico, a partir de um parâmetro anatômico, cuidará do braço, da perna ou do tumor. Já o campo da psicanálise é da ordem da subjetividade. Braço, perna ou qualquer outro membro ou órgão pode, por deslocamento ou condensação, representar outra coisa ou simbolizar uma fantasia. É por isso que o corpo anatômico ou biológico não interessa à psicanálise. A descoberta de que o sintoma neurótico é oriundo de um salto do físico para o psíquico, por meio de representações inconscientes e suas respectivas simbolizações, ocorreu porque a psicanálise fez esse movimento. Freud, médico neurologista, a partir de uma escuta que foi além do corpo biológico, fez essa passagem, deslocando a linguagem de suas clientes do seu corpo anatômico para outro corpo, onde os significantes tentavam dar conta de um sofrimento que as aprisionava numa fantasia sexual infantil. É por essa trilha aberta por Freud que a psicanálise tem tentado fazer o caminho de volta no estudo dos fenômenos psicossomáticos. Parece que é exatamente nesse trecho de passagem, do salto do físico para uma representação fora do corpo, que acontece um curto-circuito e essa passagem não acontece. É nesse ponto e lugar que se encontram, psicossomáticos e psicanalistas, debruçados sobre o mesmo fenômeno e cheios de indagações.
Como a psicanálise pode iluminar essa área sombria do comportamento humano?
CONSTRUÇÃO DO CORPO E SEUS DESTINOS
O desenvolvimento psíquico e emocional do indivíduo está, numa primeira etapa da vida, inteiramente vinculado ao seu desenvolvimento, físico e biológico. O corpo oferece as condições indispensáveis, por meio das necessidades de autoconversação, para o movimento de constituição do aparelho psíquico.
Fome, sono, sede e frio são responsáveis pelos movimentos iniciais que inauguram a primeira inter-relação que o ser humano constitui em sua vida: mãe e bebê.
Atenta desde o início às necessidades físicas do filho, cabe à mãe interpretar e socorrer os apelos infantis. Ela vai nomeando os desejos do bebê e as partes de seu corpo.
O bebê, por sua vez, vai se descobrindo e esboçando os rudimentos da constituição de sua primeira identidade. É com intenso júbilo que, por volta dos 18 meses, ele conquista sua alteridade, se percebendo como outro, separado da sua mãe. A conquista da individuação não é tranqüila. O protótipo biológico da vida intra-uterina deixa suas marcas no recém-nascido, buscado na fantasia primordial do ser humano de um só corpo para ambos. As necessidades vitais de ambos são atendidas pelo corpo da mãe. Reeditar essa fantasia de unidade paradisíaca é criar a ilusão de completude, da não-separação.
Cabe à mãe propiciar condições ao bebê de separar-se dela, gradativamente, constituindo-se em um outro ser, com corpo e identidade próprias.
Nos momentos de angústia e solidão, o bebê tentará mergulhar na ilusão de unidade corporal, evitando a ameaça da separação. A mãe será responsável pela maior ou menor possibilidade de o bebê lidar com esses movimentos com menos angústia.
Para que haja separação e individuação, o bebê precisa que a mãe mantenha com ele uma distância afetiva e tranqüilizadora, que seja ideal no sentido de nem muito perto nem muito distante. É esse espaço, que Winnicott denomina de "espaço transicional", que o bebê poderá simbolizar suas representações lidando com a angústia da ausência. A aquisição da linguagem é também um ganho que possibilita à criança abrir mão da linguagem corporal para fazer uso de uma nova forma de comunicação. No estádio não-verbal, ainda nos primórdios da vida psíquica, o corpo é parte inseparável da constituição do psiquismo. Gradativamente, com a aquisição do pensamento, a capacidade de representação, com a linguagem e a possibilidade de simbolizar, o bebê lança mão de mecanismos de incorporação, introjeção, projeção e, finalmente, identificação. Ele consegue, então, distinguir o que é como ele e o que é diferente dele. A partir de então, psiquismo e soma começam a se diferenciar, constituindo diferentes contextos do ser humano.
A construção do corpo erógeno não está desvinculada da construção do corpo anatômico, uma vez que percalços em um deixam marcas no outro. Dores, doenças, distúrbios alimentares ou do sono, tropeços do corpo biológico poderão interferir nos destinos da constituição do corpo erógeno com suas fantasias subjacentes e vice-versa: angústias, pânico, inseguranças poderão levar o bebê a adoecer fisicamente. Realidade material e realidade psíquica se entrecruzam e, a partir de uma insatisfação, a realidade psíquica se forma, resultando em uma montagem simbólica e imaginária, constituída, portanto, de imagens e significantes.
Se o que interessa à psicanálise é a realidade psíquica, o que nos interessa no fenômeno psicossomático é a sua desmontagem imaginária e simbólica. A ferida, o caroço, a urticária, a asma ou qualquer outro fenômeno psicossomático são uma metáfora grosseira que não finalizou sua tarefa de simbolização; faltam palavras que, circulando no discurso, "descolem" do corpo anatômico o que pertence ao corpo erógeno.
O trabalho de análise precisa possibilitar ao paciente criar um "espaço transicional" que não houve, para que ele prossiga no seu trabalho de representações e simbolizações, onde os "objetos transicionais" percam sua materialidade e ganhem o estatuto de fantasias inconscientes, deslocando para o corpo erógeno e que está no corpo biológico. Isso implica transformar em sintoma neurótico um sintoma físico.
Os tropeços e obstáculos na construção do corpo provocam desvios e conseqüências posteriores. Os fenômenos psicossomáticos constituem uma parte dessas conseqüências. A renúncia à materialidade é decorrente da possibilidade de representar e simbolizar, aquisição indispensável ao desenvolvimento do psiquismo humano. A impossibilidade de descolagem da materialidade é responsável, entre outros percalços, pelo fenômeno psicossomático.
O fenômeno psicossomático geralmente eclode numa circunstância que mobiliza de forma excessiva as emoções do indivíduo. São emoções muito fortes, como ódio, angústia, separações, perdas, que vão além da capacidade de o paciente lidar com essas situações. O adoecer é a "saída" que eles encontram como solução, assim como o sintoma neurótico é a saída encontrada pelo conflito psíquico.
Como acreditamos que as manifestações psicossomáticas estão ligadas também ao psiquismo humano, imaginário, real e simbólico se articulam em sua encenação. Corpo anatômico e corpo erógeno estão aprisionados um no outro e a lesão seria o traço do real entrelaçado imaginariamente numa manifestação que poderíamos denominar de "real do corpo".
Os desvios na sexualidade humana em sua constituição podem ainda resultar nos invertidos sexuais, travestis, transexuais, fetichistas etc. Este texto pretende explorar apenas o viés da psicossomática.
Trabalhar no sentido de desvendar os mistérios e artifícios psíquicos do fenômeno psicossomático me parece ser mais do que um interesse da psicanálise; é um compromisso ético.
REFERÊNCIAS
1. Benoit P. Psicanálise e Medicina. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1989.
2. Cardoso e Cunha B. Psicanálise e Estruturalismo. Assirio e Ahim Editora, 1981 .
3. Freud S. "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade". Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol XII. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1972.
4. Greps. Le Phénomène Psychosomatique et la Psychanalyse. Navarin Editeur, 1986.
5. Lacan J. Écritis. Paris: Édition du Seuil, 1966.
6. McDougall J. Théâtres du Je. Paris: Éditions Gallimard, 1982.
7. _____. Théatres du Corpos. Paris: Editions Gallimard, 1989.
8. Násio J.D. Cinco Lições sobre a Teoria de Jacques Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1983.
9. _____. Psicossomática. As Formações do Objeto a. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992.
10. Pelicier I. Conferência no Congresso Internacional sobre o Corpo. Rio de Janeiro, 1983.
11. Winnicott D. Da Pediatria à Psicanálise. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora, 1978.
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