terça-feira, 16 de março de 2010
OS SINAIS
CONTOS & TEXTOS
Os Sinais
"No princípio, o silêncio era tudo o que havia. O absoluto. Um límpido e enorme vazio completamente cheio...Do nada. Pode a mente humana imaginar o que é isso? O nada? Uma voz, de timbre que não havia e nem há com o que se possa comparar, rompe aquele silêncio. Embora forte e paradoxalmente suave, não era nem masculina tampouco feminina. Simplesmente era...o que sempre foi. E ordenara:
- Faça-te!
A ordem despedaça o nada em fragmentos ruidosos. Do som, surge fogo, e com ele um calor tão intenso que seria incompreensível um homem medir ou conceber.
Era o primeiro elemento criado. E do que era absoluto, surgem então sóis, estrelas e o conselheiro que faria companhia ao dono daquela voz: o Tempo. Com ele outros elementos surgiram. Estranhos, fascinantes, transparentes...nus.
Poderiam ser percebidos, tocados, sentidos e até represados. Mas jamais possuídos.
Eram dois elementos concebidos no útero do Tempo: a Água e o Ar. E o Tempo apresentou-os à Allah, e ele aspirou a Ar e soprou-lhe a face em agradecimento. Do sopro, nascera o Vento, irmão daqueles elementos e também uma das criações preferidas deste aqueles idos. Preferida porque ele representaria a autonomia de toda a criação e da própria Vida.
Daquele sopro, surgira também o pó, que espalhou-se. E dos fragmentos do nada fez-se acúmulo. Transformou-se em Terra, o quarto elemento. Da essência líquida, do gás, com o auxílio do fogo e do repouso da terra, graças à ação do Vento, surgiram lagos, rios, oceanos e mares. E Allah refrescou-se. Mergulhou sua semente e fecundou sua criação.
Dela cresceram outros seres. Palmeiras, árvores e flores. E vieram então os frutos.
Não havia deserto. Allah, satisfeito com a obra, descansou. Batizou sua obra de Haiêt Jnáine (Jardim da Vida). Mas ainda faltava-lhe algo e lamentou-se ao Tempo:
- Sinto-me só meu conselheiro. Possuo minha obra, mas dela queria ser possuído.
Senhor de mim e desta grandeza o que falta-me? O que falta a minha criação?"
E o Tempo respondeu-lhe
- Senhor, de ti tudo emana e do nada e do silêncio me fez surgir. Digo-lhe que é hora de entregar-se à tua obra. Dá de si. Doa tua alma e faça dela a tua perfeição. Faça-te em segredo teu quinto elemento! E dele, fecunda, gera e faça nascer filhos teus em carne para que possam conhecê-lo em espírito, responde-lhe o Tempo.
E Allah disse:
- Assim será. Meus filhos possuirão a obra. Eles cobrirão a Terra que se fez Jardim e frutificarão por si mesmos. Elevarei montes sob as águas e esta será minha herança às gerações. Estarei presente e criarei um lugar onde guardarei todos os segredos do quinto elemento criado junto aos meus filhos. Tu os educará e sob tua orientação criarei esse local. Que sugere bom amigo?, pergunta Allah.
O Tempo, calmamente disse:
- "Aos teus olhos senhor, será um pequeno lugar com um portal menor ainda.
Somente um local assim poderá abrigar a grandeza de toda tua criação e obra.
Para abrir esse portal, será necessário o conhecimento de que existem inúmeras chaves forjadas pelos sentimentos, pelas emoções e pelas atitudes. Mas somente a chave forjada pelo quinto elemento abrirá a passagem. Será desta forma que teus filhos o conhecerão. Para obter tal chave, eles haverão de aprender o caminho verdadeiro até ela. Por trilhas, eu educarei vossos filhos a seguir esse caminho e ele os conduzirá até o quinto elemento.
- Assim será. Onde o depositarei bom conselheiro?
- No coração de teus filhos, responde-lhe o Tempo.
E assim foi.
A Terra fora habitada em carne e espírito por homens e criaturas.
Com os primeiros surgiram os sentimentos e emoções a forjarem as chaves guardando o segredo do quinto elemento no local determinado pelo Tempo. Diferentes entre si, os sentimentos eram únicos em sua natureza e possuíam seus contrapontos: as ações, as atitudes.
Cada sentimento possuiria uma chave e cada atitude a função de mostrar aos homens se estavam na trilha verdadeira ou não, a qual indicaria o único caminho que levaria até o portal onde se encontrava o quinto elemento criado por Allah. Entre os muitos sentimentos e atitudes estavam a chave da Tristeza, da Sabedoria, da Vaidade, da Alegria, da Luxúria, do Orgulho e muitos outros. E o homem cobriria a Terra na sucessão de suas gerações. Da mesma forma, o Tempo seria o mentor desta evolução.
Ele haveria de ter a colaboração do Amor a distribuir-se em carinho e afeto a todos os habitantes, inclusive aos elementos naturais, como a Água, a Terra, o Fogo e o Vento. Esse último desejava ardentemente tocar o Amor, embora livre, queria possuí-lo só para si. Mas o que Vento não sabia é que ele próprio era filho de Allah e um de seus elementos preferidos. Não sabia que seu pai havia criado o quinto elemento. Ele desconhecia sua essência que já lhe pertencia. Pior, o Vento não conhecera o Tempo.
Isso porque toda vez que o conselheiro de Allah iria visitá-lo, faltava-lhe o aviso da Paciência. Assim, ele não o esperava por sua própria natureza inquieta.
Enquanto isso, o Amor distribuía sua atenção entre toda a Terra. Porém, certo dia, o Vento, já não suportando a situação e a Impaciência que se instalara em si, resolveu elaborar um terrível plano. Sua base consistia em inseminar a Discórdia entre todos por meio de uma imensa tempestade. Um Dilúvio.
Para isso, necessitaria da ajuda das chaves forjadas pela Inveja, pelo Ciúme e pela Mentira, as quais viviam isoladas das outras e queriam infiltrar-se entre elas. Com o auxílio destas, ele acreditou que varreria qualquer oponente da Terra, fossem os homens ou outros sentimentos e criaturas. Teria o Amor e um coração definitivamente só para si.
Assim, o Vento foi ter com o pérfido trio a fim de concretizar seu intento. O que ele não contava é que justamente no momento em que conspirava, sua irmã, a Brisa, passou por ali sorrateiramente e ouviu tudo. Decepcionada, ela advertiu:
- Levarei isso ao conhecimento do Tempo. Irmão, como pôde conspirar contra nós?
Impedirei isso, pois vocês não levarão a cabo essa história!
Temendo a ameaça e que seu plano fosse destruído, furioso, o Vento aprisionou sua irmã numa caverna abafada e escura, abandonando-a à própria sorte. Na noite seguinte, o ardil foi iniciado. Enquanto a Inveja, o Ciúme e a Mentira inseminavam intrigas e discórdias entre os homens e outros sentimentos, o Vento, forte como era, tratou de formar lentamente uma tempestade nunca antes criada.
Sob uma árvore e deitado na relva, descansando os pés num lago, o Amor ouve aquela gritaria e logo trata de ver o que ocorria.
Era tamanha confusão que ninguém pressentiu a tempestade se formando.
O Amor, amenizando os ânimos, logo restabeleceu o entendimento. Porém, pressente algo errado. Junto com o pressentimento, aproxima-se dele um sentimento que foi logo perguntando o que estava acorrendo. Era o Medo, que possuía duas faces: uma amiga, a outra inimiga. A face inimiga paralisava quaisquer ações e atitudes de quem desse atenção a ela. O Amor era conhecedor disso.
- Precisamos urgente avisar a todos do perigo que se forma - disse o Amor. Pressinto uma terrível tempestade a se formar. Ajuda-me Medo.
E Ambos correram depressa, cada qual para um lado, avisar todos os outros habitantes.
Enquanto o Amor auxiliava para que todos pudessem encontrar barcos e correrem em busca de abrigo. A partir daí, nunca mais a Terra seria a mesma. O Medo apresentava-se com ambas as faces, confundindo homens e sentimentos. Não havia quem atacar, por conseguinte todos confundiram-se e trataram, cada qual, de fugir rapidamente da possível catástrofe causada pela tempestade. Nascia entre eles o instinto da sobrevivência individual de cada homem. Quebrara-se a harmonia ali reinante.
Enquanto isso, o Vento captura o covarde trio que o ajudou, e prende-os na mesma caverna em que aprisionara sua irmã Brisa. Havia somente um local indicado pelo Amor onde todos estariam em segurança plena, e que não era muito distante dali. Porém, os homens se apressaram em fugir, cada um com seus próprios sentimentos.
Só o Amor não se apressara. Ele jamais havia se apressado antes. Queria certificar-se primeiro que todos os habitantes estariam salvos. Sentindo falta de sua amiga Brisa e percebendo que o Vento também não havia fugido, a ele se dirigiu:
- Vento, viste tua irmã? Estou a procurá-la e não a encontro. Vamos encontrá-la.
- Também estou a procurá-la. Venha comigo, vamos encontrá-la juntos - respondeu o Vento, sabendo que não poderia soltar sua irmã.
O Amor subiu no dorso do Vento, e ambos sairam em busca da Brisa.
- Não podes amenizar a fúria desta tempestade?
- Não sei se posso, meu Amor. Esta tempestade é obra da Inveja, do Ciúme, da Mentira. Creio que o trio esteja com minha irmã, pois ela disse-me que desconfiara que eles queriam tomar de assalto a Terra para si. Eu avisei que seria perigoso conversar com estes sentimentos, mas ela não me ouviu. Se isso for verdade, temo por ela. Temos uma chance: ficas comigo e juntos poderemos destruir a tempestade.
Ao ouvir aquilo o Amor não compreendia. Ele jamais usara sua força para destruir coisa alguma, fosse da natureza fosse qualquer sentimento, homem ou criatura. Ele não conhecia a Inveja, o Ciúme e Mentira. Não podia crer que a Brisa estivesse correndo algum perigo. Seus pensamentos são interrompidos quando presente a presença de sua amiga...
- Ali! Ali! Desça-me Vento - pediu o Amor. Sinto que a Brisa está naquela caverna, presa.
Ao perceber que estava certo e prestes a descobrir quem estaria por trás do ardil, o Vento atende o pedido. Não sem antes aumentar mais a força daquela tempestade. Desta forma, deduziu que Brisa e o trio que aprisionara e afogariam rápido, porém ele teria "tempo" para salvara o Amor. Contudo, não foi assim que ocorreu.
O Vento não conhecia o significado tampouco a dimensão do Tempo. Jamais tivera a companhia da Paciência e nem a compreensão do que ele próprio criara. Assim, o Amor também começou a se afogar também. O Vento havia perdido seu controle. Sua mão, antes firme, agora estava embrutecida e disforme. Se resolvesse salvá-lo, acabaria por matar o Amor de vez.
Em desespero, clamou:
-Alguém ajude-me! Não posso perdê-lo.
Muitos homens, mulheres e crianças se afogaram. Criaturas terrestres, da mais belas as mais exóticas são tragadas pelas águas. Pássaros também, e os que mais mostraram resistência foram as águias e os falcões. Assim a Morte foi trazida à Terra. Se acaso ela se apossasse também do Amor, isto significaria o fim de todos os homens, dos sentimentos e de toda a criação. O fim da existência e do Jardim da Vida.
Avistando ainda alguns barcos que estavam partindo, o Vento rumou em direção a eles. Aos prantos, implorou para que salvassem o Amor. A Riqueza e a Avareza, ouvindo seu clamor desesperado, disseram:
- Não podemos levá-lo. Veja todo esse ouro, prata e bronze que carregamos. Teremos que jogar fora parte desse tesouro nas águas para recebê-lo em nosso barco, senão ele afundará.
O Vento pediu então a Vaidade, que vinha logo atrás.
- Também não posso levar o Amor. Olhe para ele? Esteve tão ocupado em auxiliar os outros que esqueceu de si próprio. Veja a situação em ele se encontra agora. Além de ter se sujado, se machucou. Bem sabe que eu não suporto sujeira e dor.
Logo atrás dela vinha o barco da Tristeza:
- Ajude-o amiga Tristeza", pediu. Mas a Tristeza só via a si mesma e, de tão desolada, respondeu-lhe:
- Não quero a companhia de ninguém. Quero partir e ficar sozinha no meu barco. Ajude-o você mesmo.
Chorando, o que piorava ainda mais a tempestade por causa de suas lágrimas, o Vento implora à Alegria que salve o Amor. Rindo, ela pergunta:
- ...O quê? Que é que está gritando aí? Estou feliz em partir para outros mundos, conhecer novas terras...Pare de chorar. Seu desespero vai inundar meu barco! E partiu às gargalhadas.
O Vento não conhecia a Esperança. Vendo que o Amor estava sem forças, decidiu soltar sua irmã e implorar-lhe perdão e ajuda. Ao soltá-la, o pérfido trio também escapou. Porém não eram mais a Inveja, o Ciúme e a Mentira. Da união dos três, nascera a Traição.
Enquanto isso, a Brisa só consegue fazer com que o Amor segure-se na última pedra que ainda se via sobre a superfície da água.
A tempestade transformara-se num furacão de proporções não imaginadas. A Terra, quase totalmente inundada, estava próxima do fim.
Vítima da Ignorância de si mesmo, o Vento chorou convulsivamente.
- Salvem o Amor! Eu imploro!
Eis que lembrou-se daquele a quem ele jamais havia esperado para uma visita...Ele nem lembrava mais seu nome, contudo ainda assim clamou, olhando para o infinito daquele céu sombrio e escuro:
- Eu Imploro, eu imploro!
E do nada, surge serenamente um misterioso ancião a remar numa pequena canoa. Cada vez que o velho tocava com o remo as vagas e imensas ondas, a agitação se acalmava e o fluxo da água diminuía. Sem forças, o Amor o vê, mas desfalece em seguida. O velho o ampara antes que ele se afogasse. Em seus braços, coloca-o carinhosamente no pequeno barco. Com a ajuda da Brisa, leva-o para o mais alto dos picos.
Lentamente, o Amor foi se recuperando. Ao abrir os olhos, vê a Brisa e ao seu lado uma velha amiga, a Sabedoria, a quem pergunta:
-Quem era aquele homem que me salvou?
A Sabedoria responde-lhe que tinha sido o Tempo.
- Por que só o Tempo pôde me salvar e trazer até aqui?, questionou.
- Porque só ele tem a capacidade de auxiliar a tudo e a todos os habitantes e elementos dessa terra. Ele é meu irmão e o mestre que ensina os homens a chegarem aos locais mais difíceis. A entenderem a vida, os sentimentos. A conhecerem o significado do respeito e da gratidão. A descobrirem a chave e o local onde estão guardados os segredos de quem nos criou.
Allah presenciara tudo. Permitira o Tempo intervir e, com seu poder desfaz aquela desordem.
- Cesse a tempestade! A partir de agora, sequem as águas desse oceano até transformarem-se em desertos de areia. Neles criarei pequenas ilhas, onde o Amor as habitará. E nenhum covarde conhecerá ao que chamarei de Oásis.
Não esquecendo-se de quem provocara aquele caos, Allah enuncia
-Tu Vento, provocaste tal desordem por tua ignorância. Querias para ti, o que já possuías. Não ouviste aquele que te diria isso. Jamais ouviste a Paciência que lhe traria o Tempo como conselheiro. Agora, terás tua alma presa na liberdade. Serás livre e teu coração viverás em solidão até que este deserto se transforme em oceano novamente, por tuas próprias lágrimas.
Ao ouvir o decreto de Allah e saber que o Vento era o responsável por aquela tragédia, o Amor pediu:
- Senhor, saberei viver nessas ilhas. Oásis. Ainda que sem companhia, ainda que minha alma, agora dividida, aguarde por 10 mil anos... Nada reclamarei, pois o Tempo me salvou. Por teus segredos Allah, clamo pelo Vento. Permita que eu possa tocá-lo ao menos uma única vez. Não posso abandoná-lo, tampouco confiná-lo à solidão de sua liberdade. Prometo que juntos, eu e o Vento, mostraremos aos homens o caminho para a chave que abrirá o portal de vossos segredos.
Ao ver tal o desprendimento, Allah se compadece:
- O Vento, ao invés de preservá-lo, com sua ação trouxe a Morte à minha obra. Haiêt Jnaíne não será mais aqui. Contudo, em minha obra nada, nem ninguém, homem, criatura ou elemento perderá aquilo que possui. Se perder, será a ilusão de ter possuído o que de fato não foste de direito. Assim, concederei teu pedido.
Toquem-se, uma única vez. Dessa união, vocês terão filhos. De vossos filhos nascerão gerações, e até que o deserto que criei se transforme em oceano novamente, que levem 10 mil anos, tu Vento, não será tocado pelo Amor novamente.
Ao ouvir isso, o Vento, em lágrimas convulsivas, agradece. Mas Allah não havia enunciado ainda sua punição.
- Vento, tu terás a alma livre com teu coração entregue! Tu atravessarás os desertos e toda a terra. A Inveja, o Ciúme, a Mentira, a Traição e a Morte serão tuas inimigas, as quais combaterás com a força do coração de vossos filhos. Serás portador das palavras que forem sussurradas por eles aos ouvidos de tua irmã Brisa. Terás meu conselheiro, o Tempo como permanente amigo. E tuas lágrimas amargas alimentarão meu Oásis. Tu verá e ouvirá o Amor, presente na alma e no coração dos teus filhos sempre que eles cruzarem estas areias.
E tua descendência haverá de descobrir a chave, forjada pelo quinto elemento e abrirá o portal dos meus segredos. Pois na alma dessas gerações haverá uma saudade cravada do que está inacabado. Será ela quem te libertará de tua própria Liberdade e Solidão. Eu os chamarei de Tuaregue. Não os abandonados de Deus, mas Filhos do Vento e do Amor. Filhos do Tempo...Filhos meus", finaliza Allah.
E assim foi...
Extraída do capítulo 3 - Os Sinais - do livro: 'O Tuaregue'
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário