sábado, 13 de março de 2010
IMAGENS ICONOGRAFIA ICONOFAGIA
As imagens que nos devoram
Antropofagia e Iconografia
Imagem nº 1
A corrida entre a máquina de escrever e a máquina de costura
No ano de 1919, na rua Koethener, em Berlim, os divertidos dadaístas, em mais uma de suas concorridas sessões públicas, promoveram uma corrida entre uma máquina de costura e uma máquina de escrever. Enquanto Raoul Hausmann costurava febrilmente uma tira de tecido juntando uma ponta à outra, Richard Huelsenbeck datilografava, como louco, página após página, de uma escrita qualquer. Quando o juiz e narrador George Grosz anunciou a vitória da máquina de costura, Huelsenbeck atirou a máquina ao chão em uma encenação de protesto, arrebentado-a.
Talvez sem saberem a extensão de sua brincadeira-heppenning, os dadaístas estavam vislumbrando naquele momento a derrota da escrita e sua lentidão e a vitória da sutura, do pesponto e da costura em seu gesto veloz de juntar pedaços. Já estávamos vivendo em um mundo ora rasgado, ora recortado, ora dilacerado e que somente se manteria como imagem de mundo se fosse costurado na forma de montagem ou colagem. A linha, que até então servira à escrita, passaria a ser apenas o fio que costura as imagens já prontas, imagens prêt-à-porter, porém sempre de segunda ou terceira mão, sempre já previamente digeridas pelos distribuidores de imagens em grande escala que já prenunciavam na atividade jornalística e na publicitária. A cultura do lento tecer criada pela escrita estava perdendo seu lugar para a cultura imagética da colagem e da montagem, da velocidade e da voracidade: uma imagem devora a outra velozmente, transformando-se em outra imagem, também pronta para ser devorada. A costura é a metáfora da colagem e da montagem. E a colagem é a representação por excelência das imagens que devoram imagens que, com razão, reivindicou Hans Belting na Casa das Culturas do Mundo em Berlim em janeiro de 1999, no primeiro seminário sobre as relações entre a imagem e a violência. Assim, temos na devoração de imagens pelas próprias imagens, uma das configurações daquilo que denominei “iconofagia”.
Imagem nº 2
A perspectiva em abismo
Foi Eduardo Peñuela Cañizal que apontou a existência de uma perspectiva em abismo no cinema do espanhol Pedro Almodóvar, que constrói algumas de suas imagens buscando substratos imagéticos nos filmes de Luis Buñuel, que, por sua vez, as reconstrói a partir de cenas de outros filmes ou ainda de imagens clássicas da pintura espanhola. Quando Pablo Picasso pinta suas versões de “As Meninas”, de Velásquez, também está trabalhando na ótica da perspectiva em abismo. Esta forma abismal de lidar com as imagens não se restringe ao cinema ou à pintura, passou a ser amplamente utilizada também pelos meios de comunicação de massa. Alguns anos atrás o jornal Folha de São Paulo publicou em sua primeira página a foto do esquife solitário de um pixador paulista morto no Rio de Janeiro. Dentro da onda de protestos dos leitores pela dureza da imagem, também se incluíam manifestações de júbilo e êxtase pela beleza da foto que lembrava grandes momentos da pintura universal, recordando que a fotografia publicada não tinha como objeto apenas a morte e a violência, mas também os efeitos de luz e sombra dos quadros de Rembrandt ou de Caravaggio.
Assim, o mundo das imagens iconofágicas possui uma dimensão abismal. Por trás de uma imagem haverá sempre uma outra imagem que também remeterá a outras imagens.
Imagem nº 3
A escrita e a imagem
A escrita nasceu das imagens figurativas. As superfícies de pigmentos e cores, espacialidades bidimensionais foram se reduzindo paulatinamente à unidimensionalidade da linha. Mas a palavra ‘linha’ vem do latim línea, que significava ‘fio de linha’ ‘corda ou cordel de linho’. Aqui temos o entroncamento, de onde nasceram, por um lado, o tecido, a roupa, as vestimentas em enfim, a moda e, por outro, a escrita, ambos veículos da chamada mídia secundária (Harry Pross). O desenvolvimento de cada um foi exatamente na direção oposta do outro. Enquanto a escrita nasce dos desenhos e das superfícies pintadas e se transformam em linha, o fio de linha se ordena em trama e urdidura com outros fios para se transformar em superfícies de tecidos. As direções de movimentos são, em princípio, invertidas: a imagem vira linha para criar a escrita e a linha vira trama para dar origem ás superfícies, para fazer os tecidos, para constituir as redes. Acontece que o século XX, o século da imagem, fez renascer a escrita imagética. Com o Futurismo, com o Cubismo, e sobretudo com Dada, mas também as artes aplicadas, o design e a propaganda passaram a iconizar a escrita e as letras voltaram a ser imagens, como no princípio permitindo que também a escrita e a letra recuperassem sua natureza bidimensional da origem. As imagens, superfícies bidimensionais, oferecem espaço para que nós, homens, entremos em seu mundo rapidamente.
Ao contrário da escrita que exige tempo de leitura e decifração, permitindo a escolha entre entrar ou não em seu mundo, a imagem convida a entrarmos imediatamente e não cobra o preço da decifração. A imagem não exige uma senha de entrada, pois o seu tributo é a sedução e o envolvimento. A imagem nos absorve, nos chama permanentemente a sermos devorados por ela, oferecendo o abismo do pós-imagem, pois após ela sempre há uma perspectiva em abismo, um vazio do igual (ou, como dia Walter Benjamin, uma “catástrofe” do sempre igual”), um vácuo de informações, um buraco negro de imagens que suga e faz desaparecer tudo o que não é imagem.
Imagem nº 4
A iconofagia, a antropofagia, a imagem e o beijo
Toda comunicação humana nasce do vínculo primordial da amamentação, do beijo que busca o alimento. Ao contrário da imagem, que nos leva a um abismo, o beijo nasce do ato da alimentação original e oferece, como contato e comunicação em mídia primária, a maternidade, a profundidade e a tridimensionalidade. Assim, o beijo, também sendo um ato de devoração, é essencialmente distinto da devoração das imagens ou pelas imagens. É a imensa diferença que há entre a antropofagia e a iconofagia. Enquanto na antropofagia (e o beijo é um legítimo ato de antropofagia!) devoramos o outro ou somos devorados pelo outro, na iconofagia somos devorados pelo abismo que tem como portal triunfal de entrada... uma imagem. E nos transforma, seres humanos tridimensionais de carne e osso, necessariamente, em imagens.
Como toda mídia secundária ou terciária, tanto a escrita, hoje iconizada para veiculação rápida pelos meios eletrônicos, como as imagens igualmente potencializadas por veículos de grande alcance, quando vistas apenas em sua natureza mediadora, são portanto a expressão de um abismo voraz, uma grande boca insaciável. Seu gesto, contudo, não é bilateral como o beijo. Sua operação não é uma troca, mas uma apropriação.
Imagem nº 5
Alimento e excremento
Toda ingestão pressupõe uma excreção. Assim também na iconofagia. Como ela consiste em uma infindável e abismal repetição, uma remontagem e uma recolagem, os excrementos das imagens que devoram imagens serão sempre mais imagens. A idéia dos excrementos resultantes da iconofagia, indagada por Bernd Ternes em Berlim, traz consigo ainda uma outra indagação: quais seriam os excrementos quando somos devorados pelas imagens? Quando devoramos imagens, produzimos imagens excrementais. E quando as imagens nos devoram, produzem elas imagens excrementais ou seres humanos excrementais? De qual natureza serão os detritos das imagens devoradoras?
Imagem nº 6
Voracidade compulsiva
A questão dos excrementos é tão mais importante quanto mais profundamente se adentra na era das montagens e das colagens. Um mecanismo de dependência se desenvolve a partir da geração e do consumo crescente de imagens, uma voracidade compulsiva.
Assim, não será difícil imaginar que a toda essa inflação das imagens trazidas pelo desenvolvimento das máquinas de imagens corresponde um inflacionamento na produção de imagens excrementais. As imagens visuais, as imagens auditivas, as imagens mentais e conceituais, aquelas mesmas imagens que ajudaram a povoar o imaginário da criatividade humana, que ajudaram o homem a construir a sua segunda natureza, sua cultura, entraram em processo de proliferação exacerbada. Quanto mais elas se oferecem como alimento, mais aumenta a avidez por imagens. Quanto mais aumenta a avidez, menos seletiva e menos crítica se tornam a sua recepção e a sua oferta. Quanto menos seletiva e menos crítica sua recepção, tanto menos vínculos e relações, tanto menos fios e elos, tanto menos horizontes e expectativas, tanto menos consideração por tudo que está ao lado, tanto menos ética, tanto menos história.
No desgaste e na perda da capacidade de vincular, de relacionar, é que se dá a inversão do processo devorador: de devoradores indiscriminados de imagens passamos a ser indiscriminadamente devorados por elas.
Imagem nº 7
A costura desesperada
Dentre as manifestações imagéticas mais desesperadas da devoração pelas imagens registram-se,s em dúvida, os trabalhos do artista esquizofrênico Artur Bispo do Rosário. Tendo vivido na Colônia de Psicopatas Juliano Moreira, no Rio de Janeiro, por mais de trinta anos, sua obra artística aí se construiu, a partir de objetos extorquidos de outros internos do hospício. Tomava suas roupas, não raro valendo-se de suas qualidades de antigo boxeador campeão e marinheiro, e desfiava o tecido para, com a linha resultante, costurar e bordar infinitamente, com palavras, nomes e frases, suas bandeiras, faixas de concursos de beleza feminina, mantos e painéis. Envolvia cuidadosamente com a linha do tecido desfeito os objetos que transformaria em cetros, estandartes e mastros. A linha e a costura eram o canal de vinculação desesperada do artista no mundo das imagens em que vivia durante os surtos da doença. A febril e insana produção de símbolos indentificadores e demarcadores dão o testemunho da profusão de imagens que povoavam seu mundo interior – melhor dizendo, o mundo no interior do qual ele vivia. Sua obra, à maneira do “Merzbau” de Kurt Schwitters, foi preenchendo e invadindo cela após cela, corredor após corredor do manicômio, em um claro gesto de partilhar com os outros as insistentes imagens que o acompanhavam dia e noite.
Imagem nº 8
Nise da Silveira
O Museu da Imagem do Inconsciente, também no Rio, reúne, desde 1946, uma enorme coleção de produção imagética dos pacientes de hospitais psiquiátricos. Criado pela corajosa e genial Nise da Silveira, com o intuito de “fazer sondagens no mundo intrapsíquico” e abrir um “acesso ao mundo do esquizofrênico”, o Museu criou um método especial de ordenar e classificar as imagens produzidas pelos doentes mentais. Em seu acervo estão os testemunhos de vidas devoradas pelas imagens. Os desenhos, pinturas e esculturas componentes do acervo são representações das imagens em cujo mundo viviam atormentados os doentes-artistas. O Museu das Imagens do Inconsciente é mais uma documentação eloqüente da voracidade das imagens, desde aquelas mais primordiais e arquetípicas até aquelas que caracterizam o fecundo século XX, o chamado “século das imagens”.
Imagem nº 9
Leo Navratil
Foi o psiquiatra austríaco Leo Navratil, atuante durante muitos anos no Hospital Psiquiátrico de Gugging, perto de Viena, quem elaborou uma classificação dos principais traços expressivos das imagens produzidas pelos esquizofrênicos. Navratil detecta grandes traços estruturais como ‘fisionomização’, ‘geometrização/ritmização’ e ‘simbolização’. A freqüência com que ocorrem estes elementos estruturais nos desenhos e pinturas, na poesia e na escultura dos pacientes de Gugging, oferece a Navratil uma prova irrefutável sobre a tipologia das imagens que atormentam seus doentes. E oferece aos estudos da imagem, da comunicação e da cultura um caminho instigante para compreender a obsessividade do assédio a que nos submetemos. A fértil produção de imagens no decorrer do século que recém findou, independentemente de seu âmbito de origem, tem sempre presente ao menos um dos traços da expressividade esquizofrênica. A obsessão pelas fisionomias conhecidas e pelos ídolos, pelas caras e pela visibilidade fisionômica, a frenética repetição, a insaciável recorrência das mesmas imagens em evidência, a adoração pelos formatos padronizados, previsíveis e sempre os mesmos, a adoração dos símbolos e obediência cega a seus preceitos são alguns dos evidentes traços da subordinação humana em relação ao mundo das imagens. A contribuição de Leo Navratil, reconhecida internacionalmente, ainda se restringe ao pequeno mundo da psiquiatria, não tendo podido, por enquanto, frutificar em universos cognitivos mais amplos.
Imagem nº 10
As cavernas das imagens
A imagem também se constitui em diálogo com seu entorno. Assim temos que considerar seu espaço circundante como parte integrante essencial das imagens. As cavernas nas quais nasceram as primeiras manifestações artísticas, ao lado de serem locais de provável culto e provável introspecção, eram incubadoras de imagens, espaços nos quais o homem se permitia conviver lado a lado com suas imagens, conferindo ao seu imaginário, um tipo de “segunda realidade” (Ivan Bystrina), em primeiro lugar, o mesmo status que ele próprio possuía. Depois conferiu a elas o poder sobre seu próprio destino. Nesses espaços o homem elevou as imagens à condição de divindades. O espaço das cavernas de imagens migrou para os espaços das religiões, os templos, as catedrais, as mesquitas, as capelas. Sempre povoados pelas imagens, ora em suportes visíveis, ora na presença apenas de formas abstratas da arquitetura e da decoração, nas escritas das paredes ou apenas nas paredes das mentes, o espaço fechado dos templos assumiu o papel de útero das imagens que acompanhariam o homem em sua lida diária. Sua função era oferecer aos homens o alimento imaginal, enquanto sua própria imagem era de espaço de auto-sacrifício, entrega e regressão. A migração seguinte se dá na transferência das imagens para as salas de viver, o espaço social e nobre das moradias. Nesses espaços nos entregamos sem culpa, no calor da privacidade e no fim da resistência corporal, no estertor das coerções calendárias do dia (Harry Pross), nos entregamos à voracidade das imagens. Do “living room” ao “chatroom”, passando pelo “showroom” e pelos “sites”, o que caracteriza a todos é a proposta de aconchego, mas não mais acompanhado da introspecção, mas da ‘extrospecção’. Nestes espaços, como nas cavernas e nos templos, não estamos mais exercendo nossa capacidade de ver, mas nos colocamos como objetos para sermos vistos. Nos ofertamos ao olhar das imagens. Já não vemos as imagens, apenas somos vistos por elas.
Imagem nº 11
Corredores de imagens
Como nômade e caçador, o homem aprendeu a se apropriar das imagens à margem de seus caminhos. E, de volta ao calor e à fogueira do agrupamento, aprendeu a alimentar o imaginário dos outros de seu grupo, com as cenas apreendidas ao longo de suas estradas. A caçada buscava não apenas alimento, mas também imagens, das quais todos se alimentavam, caçadores e sedentários. Os caminhos, por terra ou por mar, sempre foram povoados por imagens. Para poder apropriar-se delas era necessário resistir ao seu poder de sedução ou vencer sua astúcia e/ou força física. O encanto das viagens na reside em outro lugar que não seja o da busca de imagens (visuais, acústicas, olfativas, gustativas, táteis ou vivenciais). Os caminhos, estradas e rotas de imagens, no entanto, migraram para as grandes avenidas, com painéis, outdoors e displays, luminosos e banners. Novamente o que ocorre é que, encerrados em nossas naves, somos presa fácil para as imagens que saltam sobre nós, que nos assaltam. A apropriação é mais uma vez inevitável: não somos chamados a ver, somos vistos pelas imagens. Exatamente assim ocorre também nas modernas avenidas da informação, as chamadas infovias e suas ferramentas de navegação. Não temos o direito de não olhar, escravos que nos tornamos de nossos olhos. E, com isto nos despedimos das sagas dos heróis que resistiram aos monstros devoradores e retornaram para produzir suas próprias imagens.
Norval Baitello Junior
28/mar/2000
Doutor em Ciências da Comunicação e Literatura Comparada pela Universidade Livre de Berlim. Coordenador do Centro Interdisciplinar de Pesquisas em Semiótica da Cultura e da Mídia, junto à Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP. Diretor da Faculdade de Comunicação e Filosofia da PUC-SP. Autor dos livros: "Die Dada-Internationale. Der Dadaismus in Berlin und der Modernismus in Brasilien" e "O Animal que Parou os Relógios. Ensaios de Semiótica da Cultura e da Mídia".
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário