Pessoa, fernando. poemas completos de alberto caeiro - Document Transcript
O GUARDADOR DE REBANHOS (1911-1912) IEu nunca guardei rebanhos,Mas é como se os guardasse.Minha alma é como um pastor,Conhece o vento e o solE anda pela mão das EstaçõesA seguir e a olhar.Toda a paz da Natureza sem genteVem sentar-se a meu lado.Mas eu fico triste como um pôr de solPara a nossa imaginação,Quando esfria no fundo da planícieE se sente a noite entradaComo uma borboleta pela janela.Mas a minha tristeza é sossegoPorque é natural e justaE é o que deve estar na almaQuando já pensa que existeE as mãos colhem flores sem ela dar por isso.Como um ruído de chocalhosPara além da curva da estrada,Os meus pensamentos são contentes.Só tenho pena de saber que eles são contentes,Porque, se o não soubesse,Em vez de serem contentes e tristes,Seriam alegres e contentes.Pensar incomoda como andar à chuvaQuando o vento cresce e parece que chove mais.Não tenho ambições nem desejosSer poeta não é uma ambição minhaÉ a minha maneira de estar sozinho.E se desejo às vezesPor imaginar, ser cordeirinho(Ou ser o rebanho todoPara andar espalhado por toda a encostaA ser muita cousa feliz ao mesmo tempo), 1
É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol,Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luzE corre um silêncio pela erva fora.Quando me sento a escrever versosOu, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos,Escrevo versos num papel que está no meu pensamento,Sinto um cajado nas mãosE vejo um recorte de mimNo cimo dum outeiro,Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas idéias,Ou olhando para as minhas idéias e vendo o meu rebanho,E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se dizE quer fingir que compreende.Saúdo todos os que me lerem,Tirando-lhes o chapéu largoQuando me vêem à minha portaMal a diligência levanta no cimo do outeiro.Saúdo-os e desejo-lhes sol,E chuva, quando a chuva é precisa,E que as suas casas tenhamAo pé duma janela abertaUma cadeira prediletaOnde se sentem, lendo os meus versos.E ao lerem os meus versos pensemQue sou qualquer cousa natural —Por exemplo, a árvore antigaÀ sombra da qual quando criançasSe sentavam com um baque, cansados de brincar,E limpavam o suor da testa quenteCom a manga do bibe riscado. (8.3.1914) IIO meu olhar é nítido como um girassol.Tenho o costume de andar pelas estradasOlhando para a direita e para a esquerda,E de vez em quando olhando para trás...E o que vejo a cada momentoÉ aquilo que nunca antes eu tinha visto,E eu sei dar por isso muito bem...Sei ter o pasmo essencialQue tem uma criança se, ao nascer, 2
Reparasse que nascera deveras...Sinto-me nascido a cada momentoPara a eterna novidade do Mundo...Creio no mundo como num malmequer,Porque o vejo. Mas não penso nelePorque pensar é não compreender ...O Mundo não se fez para pensarmos nele(Pensar é estar doente dos olhos)Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,Mas porque a amo, e amo-a por isso,Porque quem ama nunca sabe o que amaNem sabe por que ama, nem o que é amar ...Amar é a eterna inocência,E a única inocência não pensar... (8.3.1914) IIIAo entardecer, debruçado pela janela,E sabendo de soslaio que há campos em frente,Leio até me arderem os olhosO livro de Cesário Verde.Que pena que tenho dele! Ele era um camponêsQue andava preso em liberdade pela cidade.Mas o modo como olhava para as casas,E o modo como reparava nas ruas,E a maneira como dava pelas cousas,É o de quem olha para árvores,E de quem desce os olhos pela estrada por onde vai andandoE anda a reparar nas flores que há pelos campos ...Por isso ele tinha aquela grande tristezaQue ele nunca disse bem que tinha,Mas andava na cidade como quem anda no campoE triste como esmagar flores em livrosE pôr plantas em jarros... 3
IVEsta tarde a trovoada caiuPelas encostas do céu abaixoComo um pedregulho enorme...Como alguém que duma janela altaSacode uma toalha de mesa,E as migalhas, por caírem todas juntas,Fazem algum barulho ao cair,A chuva chovia do céuE enegreceu os caminhos ...Quando os relâmpagos sacudiam o arE abanavam o espaçoComo uma grande cabeça que diz que não,Não sei porquê — eu não tinha medo —pus-me a rezar a Santa BárbaraComo se eu fosse a velha tia de alguém...Ah! é que rezando a Santa BárbaraEu sentia-me ainda mais simplesDo que julgo que sou...Sentia-me familiar e caseiroE tendo passado a vidaTranqüilamente, como o muro do quintal;Tendo idéias e sentimentos por os terComo uma flor tem perfume e cor...Sentia-me alguém que possa acreditar em Santa Bárbara...Ah, poder crer em Santa Bárbara!(Quem crê que há Santa Bárbara,Julgará que ela é gente e visívelOu que julgará dela?)(Que artifício! Que sabemAs flores, as árvores, os rebanhos,De Santa Bárbara?... Um ramo de árvore,Se pensasse, nunca podiaConstruir santos nem anjos...Poderia julgar que o solÉ Deus, e que a trovoadaÉ uma quantidade de genteZangada por cima de nós ...Ali, como os mais simples dos homens 4
São doentes e confusos e estúpidosAo pé da clara simplicidadeE saúde em existirDas árvores e das plantas!)E eu, pensando em tudo isto,Fiquei outra vez menos feliz...Fiquei sombrio e adoecido e soturnoComo um dia em que todo o dia a trovoada ameaçaE nem sequer de noite chega. VHá metafísica bastante em não pensar em nada.O que penso eu do mundo?Sei lá o que penso do mundo!Se eu adoecesse pensaria nisso.Que idéia tenho eu das cousas?Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?Que tenho eu meditado sobre Deus e a almaE sobre a criação do Mundo?Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhosE não pensar. É correr as cortinasDa minha janela (mas ela não tem cortinas).O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!O único mistério é haver quem pense no mistério.Quem está ao sol e fecha os olhos,Começa a não saber o que é o solE a pensar muitas cousas cheias de calor.Mas abre os olhos e vê o sol,E já não pode pensar em nada,Porque a luz do sol vale mais que os pensamentosDe todos os filósofos e de todos os poetas.A luz do sol não sabe o que fazE por isso não erra e é comum e boa.Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?A de serem verdes e copadas e de terem ramosE a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,A nós, que não sabemos dar por elas.Mas que melhor metafísica que a delas, 5
Que é a de não saber para que vivemNem saber que o não sabem?"Constituição íntima das cousas"..."Sentido íntimo do Universo"...Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.É incrível que se possa pensar em cousas dessas.É como pensar em razões e finsQuando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvoresUm vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.Pensar no sentido íntimo das cousasÉ acrescentado, como pensar na saúdeOu levar um copo à água das fontes.O único sentido íntimo das cousasÉ elas não terem sentido íntimo nenhum.Não acredito em Deus porque nunca o vi.Se ele quisesse que eu acreditasse nele,Sem dúvida que viria falar comigoE entraria pela minha porta dentroDizendo-me, Aqui estou!(Isto é talvez ridículo aos ouvidosDe quem, por não saber o que é olhar para as cousas,Não compreende quem fala delasCom o modo de falar que reparar para elas ensina.)Mas se Deus é as flores e as árvoresE os montes e sol e o luar,Então acredito nele,Então acredito nele a toda a hora,E a minha vida é toda uma oração e uma missa,E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.Mas se Deus é as árvores e as floresE os montes e o luar e o sol,Para que lhe chamo eu Deus?Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;Porque, se ele se fez, para eu o ver,Sol e luar e flores e árvores e montes,Se ele me aparece como sendo árvores e montesE luar e sol e flores, 6
É que ele quer que eu o conheçaComo árvores e montes e flores e luar e sol.E por isso eu obedeço-lhe,(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?).Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,Como quem abre os olhos e vê,E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,E amo-o sem pensar nele,E penso-o vendo e ouvindo,E ando com ele a toda a hora. VIPensar em Deus é desobedecer a Deus,Porque Deus quis que o não conhecêssemos,Por isso se nos não mostrou...Sejamos simples e calmos,Como os regatos e as árvores,E Deus amar-nos-á fazendo de nósBelos como as árvores e os regatos,E dar-nos-á verdor na sua primavera,E um rio aonde ir ter quando acabemos! ... VIIDa minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo...Por isso a minha aldeia é tão grande como outra terra qualquerPorque eu sou do tamanho do que vejoE não, do tamanho da minha altura...Nas cidades a vida é mais pequenaQue aqui na minha casa no cimo deste outeiro.Na cidade as grandes casas fecham a vista à chave,Escondem o horizonte, empurram o nosso olhar para longe de todo o céu,Tornam-nos pequenos porque nos tiram o que os nossos olhos nos podem dar,E tornam-nos pobres porque a nossa única riqueza é ver. VIII 7
Num meio-dia de fim de primaveraTive um sonho como uma fotografia.Vi Jesus Cristo descer à terra.Veio pela encosta de um monteTornado outra vez menino,A correr e a rolar-se pela ervaE a arrancar flores para as deitar foraE a rir de modo a ouvir-se de longe.Tinha fugido do céu.Era nosso demais para fingirDe segunda pessoa da Trindade.No céu era tudo falso, tudo em desacordoCom flores e árvores e pedras.No céu tinha que estar sempre sérioE de vez em quando de se tornar outra vez homemE subir para a cruz, e estar sempre a morrerCom uma coroa toda à roda de espinhosE os pés espetados por um prego com cabeça,E até com um trapo à roda da cinturaComo os pretos nas ilustrações.Nem sequer o deixavam ter pai e mãeComo as outras crianças.O seu pai era duas pessoasUm velho chamado José, que era carpinteiro,E que não era pai dele;E o outro pai era uma pomba estúpida,A única pomba feia do mundoPorque não era do mundo nem era pomba.E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.Não era mulher: era uma malaEm que ele tinha vindo do céu.E queriam que ele, que só nascera da mãe,E nunca tivera pai para amar com respeito,Pregasse a bondade e a justiça!Um dia que Deus estava a dormirE o Espírito Santo andava a voar,Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruzE deixou-o pregado na cruz que há no céuE serve de modelo às outras. 8
Depois fugiu para o solE desceu pelo primeiro raio que apanhou.Hoje vive na minha aldeia comigo.É uma criança bonita de riso e natural.Limpa o nariz ao braço direito,Chapinha nas poças de água,Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.Atira pedras aos burros,Rouba a fruta dos pomaresE foge a chorar e a gritar dos cães.E, porque sabe que elas não gostamE que toda a gente acha graça,Corre atrás das raparigas pelas estradasQue vão em ranchos pela estradasCom as bilhas às cabeçasE levanta-lhes as saias.A mim ensinou-me tudo.Ensinou-me a olhar para as cousas.Aponta-me todas as cousas que há nas flores.Mostra-me como as pedras são engraçadasQuando a gente as tem na mãoE olha devagar para elas.Diz-me muito mal de Deus.Diz que ele é um velho estúpido e doente,Sempre a escarrar no chãoE a dizer indecências.A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.E o Espírito Santo coça-se com o bicoE empoleira-se nas cadeiras e suja-as.Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.Diz-me que Deus não percebe nadaDas coisas que criou —"Se é que ele as criou, do que duvido" —"Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,Mas os seres não cantam nada.Se cantassem seriam cantores.Os seres existem e mais nada,E por isso se chamam seres."E depois, cansados de dizer mal de Deus,O Menino Jesus adormece nos meus braçosE eu levo-o ao colo para casa.............................................................................. 9
Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.Ele é o humano que é natural,Ele é o divino que sorri e que brinca.E por isso é que eu sei com toda a certezaQue ele é o Menino Jesus verdadeiro.E a criança tão humana que é divinaÉ esta minha quotidiana vida de poeta,E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,E que o meu mínimo olharMe enche de sensação,E o mais pequeno som, seja do que for,Parece falar comigo.A Criança Nova que habita onde vivoDá-me uma mão a mimE a outra a tudo que existeE assim vamos os três pelo caminho que houver,Saltando e cantando e rindoE gozando o nosso segredo comumQue é o de saber por toda a parteQue não há mistério no mundoE que tudo vale a pena.A Criança Eterna acompanha-me sempre.A direção do meu olhar é o seu dedo apontando.O meu ouvido atento alegremente a todos os sonsSão as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.Damo-nos tão bem um com o outroNa companhia de tudoQue nunca pensamos um no outro,Mas vivemos juntos e doisCom um acordo íntimoComo a mão direita e a esquerda.Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhasNo degrau da porta de casa,Graves como convém a um deus e a um poeta,E como se cada pedraFosse todo um universoE fosse por isso um grande perigo para elaDeixá-la cair no chão. 10
Depois eu conto-lhe histórias das cousas só dos homensE ele sorri, porque tudo é incrível.Ri dos reis e dos que não são reis,E tem pena de ouvir falar das guerras,E dos comércios, e dos naviosQue ficam fumo no ar dos altos-mares.Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdadeQue uma flor tem ao florescerE que anda com a luz do solA variar os montes e os vales,E a fazer doer nos olhos os muros caiados.Depois ele adormece e eu deito-o.Levo-o ao colo para dentro de casaE deito-o, despindo-o lentamenteE como seguindo um ritual muito limpoE todo materno até ele estar nu.Ele dorme dentro da minha almaE às vezes acorda de noiteE brinca com os meus sonhos.Vira uns de pernas para o ar,Põe uns em cima dos outrosE bate as palmas sozinhoSorrindo para o meu sono.......................................................................Quando eu morrer, filhinho,Seja eu a criança, o mais pequeno.Pega-me tu ao coloE leva-me para dentro da tua casa.Despe o meu ser cansado e humanoE deita-me na tua cama.E conta-me histórias, caso eu acorde,Para eu tornar a adormecer.E dá-me sonhos teus para eu brincarAté que nasça qualquer diaQue tu sabes qual é......................................................................Esta é a história do meu Menino Jesus.Por que razão que se percebaNão há de ser ela mais verdadeira 11
Que tudo quanto os filósofos pensamE tudo quanto as religiões ensinam? IXSou um guardador de rebanhos.O rebanho é os meus pensamentosE os meus pensamentos são todos sensações.Penso com os olhos e com os ouvidosE com as mãos e os pésE com o nariz e a boca.Pensar uma flor é vê-la e cheirá-laE comer um fruto é saber-lhe o sentido.Por isso quando num dia de calorMe sinto triste de gozá-lo tanto.E me deito ao comprido na erva,E fecho os olhos quentes,Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,Sei a verdade e sou feliz. X"Olá, guardador de rebanhos,Aí à beira da estrada,Que te diz o vento que passa?""Que é vento, e que passa,E que já passou antes,E que passará depois.E a ti o que te diz?""Muita cousa mais do que isso.Fala-me de muitas outras cousas.De memórias e de saudadesE de cousas que nunca foram.""Nunca ouviste passar o vento.O vento só fala do vento.O que lhe ouviste foi mentira,E a mentira está em ti." 12
XIAquela senhora tem um pianoQue é agradável mas não é o correr dos riosNem o murmúrio que as árvores fazem ...Para que é preciso ter um piano?O melhor é ter ouvidosE amar a Natureza. XIIOs pastores de Virgílio tocavam avenas e outras cousasE cantavam de amor literariamente.(Depois — eu nunca li Virgílio.Para que o havia eu de ler?)Mas os pastores de Virgílio, coitados, são Virgílio,E a Natureza é bela e antiga. XIIILeve, leve, muito leve,Um vento muito leve passa,E vai-se, sempre muito leve.E eu não sei o que pensoNem procuro sabê-lo. XIVNão me importo com as rimas. Raras vezesHá duas árvores iguais, uma ao lado da outra.Penso e escrevo como as flores têm corMas com menos perfeição no meu modo de exprimir-mePorque me falta a simplicidade divinaDe ser todo só o meu exteriorOlho e comovo-me,Comovo-me como a água corre quando o chão é inclinado,E a minha poesia é natural corno o levantar-se vento... 13
XVAs quatro canções que seguemSeparam-se de tudo o que eu penso,Mentem a tudo o que eu sinto,São do contrário do que eu sou ...Escrevi-as estando doenteE por isso elas são naturaisE concordam com aquilo que sinto,Concordam com aquilo com que não concordam ...Estando doente devo pensar o contrárioDo que penso quando estou são.(Senão não estaria doente),Devo sentir o contrário do que sintoQuando sou eu na saúde,Devo mentir à minha naturezaDe criatura que sente de certa maneira ...Devo ser todo doente — idéias e tudo.Quando estou doente, não estou doente para outra cousa.Por isso essas canções que me renegamNão são capazes de me renegarE são a paisagem da minha alma de noite,A mesma ao contrário ... XVIQuem me dera que a minha vida fosse um carro de boisQue vem a chiar, manhãzinha cedo, pela estrada,E que para de onde veio volta depoisQuase à noitinha pela mesma estrada.Eu não tinha que ter esperanças — tinha só que ter rodas ...A minha velhice não tinha rugas nem cabelo branco...Quando eu já não servia, tiravam-me as rodasE eu ficava virado e partido no fundo de um barranco. XVII 14
No meu prato que mistura de Natureza!As minhas irmãs as plantas,As companheiras das fontes, as santasA quem ninguém reza...E cortam-as e vêm à nossa mesaE nos hotéis os hóspedes ruidosos,Que chegam com correias tendo mantasPedem "Salada", descuidosos...,Sem pensar que exigem à Terra-MãeA sua frescura e os seus filhos primeiros,As primeiras verdes palavras que ela tem,As primeiras cousas vivas e irisantesQue Noé viuQuando as águas desceram e o cimo dos montesVerde e alagado surgiuE no ar por onde a pomba apareceuO arco-íris se esbateu... XVIIIQuem me dera que eu fosse o pó da estradaE que os pés dos pobres me estivessem pisando...Quem me dera que eu fosse os rios que corremE que as lavadeiras estivessem à minha beira...Quem me dera que eu fosse os choupos à margem do rioE tivesse só o céu por cima e a água por baixo. . .Quem me dera que eu fosse o burro do moleiroE que ele me batesse e me estimasse...Antes isso que ser o que atravessa a vidaOlhando para trás de si e tendo pena ... XIXO luar quando bate na relvaNão sei que cousa me lembra...Lembra-me a voz da criada velhaContando-me contos de fadas.E de como Nossa Senhora vestida de mendiga 15
Andava à noite nas estradasSocorrendo as crianças maltratadas ...Se eu já não posso crer que isso é verdade,Para que bate o luar na relva? XXO Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeiaPorque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.O Tejo tem grandes naviosE navega nele ainda,Para aqueles que vêem em tudo o que lá não está,A memória das naus.O Tejo desce de EspanhaE o Tejo entra no mar em Portugal.Toda a gente sabe isso.Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeiaE para onde ele vaiE donde ele vem.E por isso porque pertence a menos gente,É mais livre e maior o rio da minha aldeia.Pelo Tejo vai-se para o Mundo.Para além do Tejo há a AméricaE a fortuna daqueles que a encontram.Ninguém nunca pensou no que há para alémDo rio da minha aldeia.O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.Quem está ao pé dele está só ao pé dele. XXISe eu pudesse trincar a terra todaE sentir-lhe uma paladar,Seria mais feliz um momento ...Mas eu nem sempre quero ser feliz.É preciso ser de vez em quando infelizPara se poder ser natural... 16
Nem tudo é dias de sol,E a chuva, quando falta muito, pede-se.Por isso tomo a infelicidade com a felicidadeNaturalmente, como quem não estranhaQue haja montanhas e planíciesE que haja rochedos e erva...O que é preciso é ser-se natural e calmoNa felicidade ou na infelicidade,Sentir como quem olha,Pensar como quem anda,E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,E que o poente é belo e é bela a noite que fica...Assim é e assim seja ... XXIIComo quem num dia de Verão abre a porta de casaE espreita para o calor dos campos com a cara toda,Às vezes, de repente, bate-me a Natureza de chapaNa cara dos meus sentidos,E eu fico confuso, perturbado, querendo perceberNão sei bem como nem o quê...Mas quem me mandou a mim querer perceber?Quem me disse que havia que perceber?Quando o Verão me passa pela caraA mão leve e quente da sua brisa,Só tenho que sentir agrado porque é brisaOu que sentir desagrado porque é quente,E de qualquer maneira que eu o sinta,Assim, porque assim o sinto, é que é meu dever senti-lo... XXIIIO meu olhar azul como o céuÉ calmo como a água ao sol.É assim, azul e calmo,Porque não interroga nem se espanta...Se eu interrogasse e me espantasseNão nasciam flores novas nos prados 17
Nem mudaria qualquer cousa no sol de modo a ele ficar mais belo...(Mesmo se nascessem flores novas no pradoE se o sol mudasse para mais belo,Eu sentiria menos flores no pradoE achava mais feio o sol ...Porque tudo é como é e assim é que é,E eu aceito, e nem agradeço,Para não parecer que penso nisso...) XXIVO que nós vemos das cousas são as cousas.Por que veríamos nós uma cousa se houvesse outra?Por que é que ver e ouvir seria iludirmo-nosSe ver e ouvir são ver e ouvir?O essencial é saber ver,Saber ver sem estar a pensar,Saber ver quando se vê,E nem pensar quando se vêNem ver quando se pensa.Mas isso (tristes de nós que trazemos a alma vestida!),Isso exige um estudo profundo,Uma aprendizagem de desaprenderE uma seqüestração na liberdade daquele conventoDe que os poetas dizem que as estrelas são as freiras eternasE as flores as penitentes convictas de um só dia,Mas onde afinal as estrelas não são senão estrelasNem as flores senão flores.Sendo por isso que lhes chamamos estrelas e flores. XXVAs bolas de sabão que esta criançaSe entretém a largar de uma palhinhaSão translucidamente uma filosofia toda.Claras, inúteis e passageiras como a Natureza,Amigas dos olhos como as cousas,São aquilo que sãoCom uma precisão redondinha e aérea,E ninguém, nem mesmo a criança que as deixa,Pretende que elas são mais do que parecem ser. 18
Algumas mal se vêem no ar lúcido.São como a brisa que passa e mal toca nas floresE que só sabemos que passaPorque qualquer cousa se aligeira em nósE aceita tudo mais nitidamente. (13.3.1914) XXVIÀs vezes, em dias de luz perfeita e exata,Em que as cousas têm toda a realidade que podem ter,Pergunto a mim próprio devagarPor que sequer atribuo euBeleza às cousas.Uma flor acaso tem beleza?Tem beleza acaso um fruto?Não: têm cor e formaE existência apenas.A beleza é o nome de qualquer cousa que não existeQue eu dou às cousas em troca do agrado que me dão.Não significa nada.Então por que digo eu das cousas: são belas?Sim, mesmo a mim, que vivo só de viver,Invisíveis, vêm ter comigo as mentiras dos homensPerante as cousas,Perante as cousas que simplesmente existem.Que difícil ser próprio e não ver senão o visível! (11.3.1914) XXVIISó a natureza é divina, e ela não é divina...Se falo dela como de um enteÉ que para falar dela preciso usar da linguagem dos homensQue dá personalidade às cousas,E impõe nome às cousas.Mas as cousas não têm nome nem personalidade:Existem, e o céu é grande a terra larga,E o nosso coração do tamanho de um punho fechado... 19
Bendito seja eu por tudo quanto sei.Gozo tudo isso como quem sabe que há o sol. XXVIIILi hoje quase duas páginasDo livro dum poeta místico,E ri como quem tem chorado muito.Os poetas místicos são filósofos doentes,E os filósofos são homens doidos.Porque os poetas místicos dizem que as flores sentemE dizem que as pedras têm almaE que os rios têm êxtases ao luar.Mas flores, se sentissem, não eram flores,Eram gente;E se as pedras tivessem alma, eram cousas vivas, não eram pedras;E se os rios tivessem êxtases ao luar,Os rios seriam homens doentes.É preciso não saber o que são flores e pedras e riosPara falar dos sentimentos deles.Falar da alma das pedras, das flores, dos rios,É falar de si próprio e dos seus falsos pensamentos.Graças a Deus que as pedras são só pedras,E que os rios não são senão rios,E que as flores são apenas flores.Por mim, escrevo a prosa dos meus versosE fico contente,Porque sei que compreendo a Natureza por fora;E não a compreendo por dentroPorque a Natureza não tem dentro;Senão não era a Natureza. XXIXNem sempre sou igual no que digo e escrevo.Mudo, mas não mudo muito.A cor das flores não é a mesma ao solDe que quando uma nuvem passa 20
Ou quando entra a noiteE as flores são cor da sombra.Mas quem olha bem vê que são as mesmas flores.Por isso quando pareço não concordar comigo,Reparem bem para mim:Se estava virado para a direita,Voltei-me agora para a esquerda,Mas sou sempre eu, assente sobre os mesmos pés —O mesmo sempre, graças ao céu e à terraE aos meus olhos e ouvidos atentosE à minha clara simplicidade de alma... XXXSe quiserem que eu tenha um misticismo, está bem, tenho-o.Sou místico, mas só com o corpo.A minha alma é simples e não pensa.O meu misticismo é não querer saber.É viver e não pensar nisso.Não sei o que é a Natureza: canto-a.Vivo no cimo dum outeiroNuma casa caiada e sozinha,E essa é a minha definição. XXXISe às vezes digo que as flores sorriemE se eu disser que os rios cantam,Não é porque eu julgue que há sorrisos nas floresE cantos no correr dos rios...É porque assim faço mais sentir aos homens falsosA existência verdadeiramente real das flores e dos rios.Porque escrevo para eles me lerem sacrifico-me às vezesÀ sua estupidez de sentidos...Não concordo comigo mas absolvo-me,Porque só sou essa cousa séria, um intérprete da Natureza,Porque há homens que não percebem a sua linguagem,Por ela não ser linguagem nenhuma. 21
XXXIIOntem à tarde um homem das cidadesFalava à porta da estalagem.Falava comigo também.Falava da justiça e da luta para haver justiçaE dos operários que sofrem,E do trabalho constante, e dos que têm fome,E dos ricos, que só têm costas para isso.E, olhando para mim, viu-me lágrimas nos olhosE sorriu com agrado, julgando que eu sentiaO ódio que ele sentia, e a compaixãoQue ele dizia que sentia.(Mas eu mal o estava ouvindo.Que me importam a mim os homensE o que sofrem ou supõem que sofrem?Sejam como eu — não sofrerão.Todo o mal do mundo vem de nos importarmos uns com os outros,Quer para fazer bem, quer para fazer mal.A nossa alma e o céu e a terra bastam-nos.Querer mais é perder isto, e ser infeliz.)Eu no que estava pensandoQuando o amigo de gente falava(E isso me comoveu até às lágrimas),Era em como o murmúrio longínquo dos chocalhosA esse entardecerNão parecia os sinos duma capela pequeninaA que fossem à missa as flores e os regatosE as almas simples como a minha.(Louvado seja Deus que não sou bom,E tenho o egoísmo natural das floresE dos rios que seguem o seu caminhoPreocupados sem o saberSó com florir e ir correndo.É essa a única missão no Mundo,Essa — existir claramente,E saber faze-lo sem pensar nisso.E o homem calara-se, olhando o poente.Mas que tem com o poente quem odeia e ama? 22
XXXIIIPobres das flores dos canteiros dos jardins regulares.Parecem ter medo da polícia...Mas tão boas que florescem do mesmo modoE têm o mesmo sorriso antigoQue tiveram para o primeiro olhar do primeiro homemQue as viu aparecidas e lhes tocou levementePara ver se elas falavam... XXXIVAcho tão natural que não se penseQue me ponho a rir às vezes, sozinho,Não sei bem de quê, mas é de qualquer cousaQue tem que ver com haver gente que pensa...Que pensará o meu muro da minha sombra?Pergunto-me às vezes isto até dar por mimA perguntar-me cousas...E então desagrado-me, e incomodo-meComo se desse por mim com um pé dormente. . .Que pensará isto de aquilo?Nada pensa nada.Terá a terra consciência das pedras e plantas que tem?Se ela a tiver, que a tenha...Que me importa isso a mim?Se eu pensasse nessas cousas,Deixaria de ver as árvores e as plantasE deixava de ver a Terra,Para ver só os meus pensamentos ...Entristecia e ficava às escuras.E assim, sem pensar tenho a Terra e o Céu. XXXVO luar através dos altos ramos,Dizem os poetas todos que ele é maisQue o luar através dos altos ramos. 23
Mas para mim, que não sei o que penso,O que o luar através dos altos ramosÉ, além de serO luar através dos altos ramos,É não ser maisQue o luar através dos altos ramos. XXXVIE há poetas que são artistasE trabalham nos seus versosComo um carpinteiro nas tábuas!...Que triste não saber florir!Ter que pôr verso sobre verso, como quem constrói um muroE ver se está bem, e tirar se não está!...Quando a única casa artística é a Terra todaQue varia e está sempre bem e é sempre a mesma.Penso nisto, não como quem pensa, mas como quem respira,E olho para as flores e sorrio...Não sei se elas me compreendemNem sei eu as compreendo a elas,Mas sei que a verdade está nelas e em mimE na nossa comum divindadeDe nos deixarmos ir e viver pela TerraE levar ao solo pelas Estações contentesE deixar que o vento cante para adormecermosE não termos sonhos no nosso sono. XXXVIIComo um grande borrão de fogo sujoO sol posto demora-se nas nuvens que ficam.Vem um silvo vago de longe na tarde muito calma.Deve ser dum comboio longínquo.Neste momento vem-me uma vaga saudadeE um vago desejo plácidoQue aparece e desaparece.Também às vezes, à flor dos ribeiros,Formam-se bolhas na água 24
Que nascem e se desmanchamE não têm sentido nenhumSalvo serem bolhas de águaQue nascem e se desmancham. XXXVIIIBendito seja o mesmo sol de outras terrasQue faz meus irmãos todos os homensPorque todos os homens, um momento no dia, o olham como eu,E, nesse puro momentoTodo limpo e sensívelRegressam lacrimosamenteE com um suspiro que mal sentemAo homem verdadeiro e primitivoQue via o Sol nascer e ainda o não adorava.Porque isso é natural — mais naturalQue adorar o ouro e DeusE a arte e a moral... XXXIXO mistério das cousas, onde está ele?Onde está ele que não aparecePelo menos a mostrar-nos que é mistério?Que sabe o rio disso e que sabe a árvore?E eu, que não sou mais do que eles, que sei disso?Sempre que olho para as cousas e penso no que os homens pensam delas,Rio como um regato que soa fresco numa pedra.Porque o único sentido oculto das cousasÉ elas não terem sentido oculto nenhum,É mais estranho do que todas as estranhezasE do que os sonhos de todos os poetasE os pensamentos de todos os filósofos,Que as cousas sejam realmente o que parecem serE não haja nada que compreender.Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos: —As cousas não têm significação: têm existência.As cousas são o único sentido oculto das cousas. 25
XLPassa uma borboleta por diante de mimE pela primeira vez no Universo eu reparoQue as borboletas não têm cor nem movimento,Assim como as flores não têm perfume nem cor.A cor é que tem cor nas asas da borboleta,No movimento da borboleta o movimento é que se move,O perfume é que tem perfume no perfume da flor.A borboleta é apenas borboletaE a flor é apenas flor. (7.5.1914) XLINo entardecer dos dias de Verão, às vezes,Ainda que não haja brisa nenhuma, pareceQue passa, um momento, uma leve brisa...Mas as árvores permanecem imóveisEm todas as folhas das suas folhasE os nossos sentidos tiveram uma ilusão,Tiveram a ilusão do que lhes agradaria...Ah, os sentidos, os doentes que vêem e ouvem!Fôssemos nós como devíamos serE não haveria em nós necessidade de ilusão ...Bastar-nos-ia sentir com clareza e vidaE nem repararmos para que há sentidos...Mas graças a Deus que há imperfeição no MundoPorque a imperfeição é uma cousa,E haver gente que erra é original,E haver gente doente torna o Mundo engraçado.Se não houvesse imperfeição, havia uma cousa a menos,E deve haver muita cousaPara termos muito que ver e ouvir... (7.5.1914) XLIIPassou a diligência pela estrada, e foi-se;E a estrada não ficou mais bela, nem sequer mais feia.Assim é a ação humana pelo mundo fora. 26
Nada tiramos e nada pomos; passamos e esquecemos;E o sol é sempre pontual todos os dias. (7.5.1914) XLIIIAntes o vôo da ave, que passa e não deixa rasto,Que a passagem do animal, que fica lembrada no chão.A ave passa e esquece, e assim deve ser.O animal, onde já não está e por isso de nada serve,Mostra que já esteve, o que não serve para nada.A recordação é uma traição à Natureza,Porque a Natureza de ontem não é Natureza.O que foi não é nada, e lembrar é não ver.Passa, ave, passa, e ensina-me a passar! (7.5.1914) XLIVAcordo de noite subitamente,E o meu relógio ocupa a noite toda.Não sinto a Natureza lá fora.O meu quarto é uma cousa escura com paredes vagamente brancas.Lá fora há um sossego como se nada existisse.Só o relógio prossegue o seu ruído.E esta pequena cousa de engrenagens que está em cima da minha mesaAbafa toda a existência da terra e do céu...Quase que me perco a pensar o que isto significa,Mas estaco, e sinto-me sorrir na noite com os cantos da boca,Porque a única cousa que o meu relógio simboliza ou significaEnchendo com a sua pequenez a noite enormeÉ a curiosa sensação de encher a noite enormeCom a sua pequenez... (7.5.1914) XLVUm renque de árvores lá longe, lá para a encosta.Mas o que é um renque de árvores? Há árvores apenas.Renque e o plural árvores não são cousas, são nomes. 27
Tristes das almas humanas, que põem tudo em ordem,Que traçam linhas de cousa a cousa,Que põem letreiros com nomes nas árvores absolutamente reais,E desenham paralelos de latitude e longitudeSobre a própria terra inocente e mais verde e florida do que isso! (7.5.1914) XLVIDeste modo ou daquele modo.Conforme calha ou não calha.Podendo às vezes dizer o que penso,E outras vezes dizendo-o mal e com misturas,Vou escrevendo os meus versos sem querer,Como se escrever não fosse uma cousa feita de gestos,Como se escrever fosse uma cousa que me acontecesseComo dar-me o sol de fora.Procuro dizer o que sintoSem pensar em que o sinto.Procuro encostar as palavras à idéiaE não precisar dum corredorDo pensamento para as palavrasNem sempre consigo sentir o que sei que devo sentir.O meu pensamento só muito devagar atravessa o rio a nadoPorque lhe pesa o fato que os homens o fizeram usar.Procuro despir-me do que aprendi,Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro,Mas um animal humano que a Natureza produziu.E assim escrevo, querendo sentir a Natureza, nem sequer como um homem,Mas como quem sente a Natureza, e mais nada.E assim escrevo, ora bem ora mal,Ora acertando com o que quero dizer ora errando,Caindo aqui, levantando-me acolá,Mas indo sempre no meu caminho como um cego teimoso.Ainda assim, sou alguém.Sou o Descobridor da Natureza.Sou o Argonauta das sensações verdadeiras. 28
Trago ao Universo um novo UniversoPorque trago ao Universo ele-próprio.Isto sinto e isto escrevoPerfeitamente sabedor e sem que não vejaQue são cinco horas do amanhecerE que o sol, que ainda não mostrou a cabeçaPor cima do muro do horizonte,Ainda assim já se lhe vêem as pontas dos dedosAgarrando o cimo do muroDo horizonte cheio de montes baixos. (10.5.1914) XLVIINum dia excessivamente nítido,Dia em que dava a vontade de ter trabalhado muitoPara nele não trabalhar nada,Entrevi, como uma estrada por entre as árvores,O que talvez seja o Grande Segredo,Aquele Grande Mistério de que os poetas falsos falam.Vi que não há Natureza,Que Natureza não existe,Que há montes, vales, planícies,Que há árvores, flores, ervas,Que há rios e pedras,Mas que não há um todo a que isso pertença,Que um conjunto real e verdadeiroÉ uma doença das nossas idéias.A Natureza é partes sem um todo.Isto é talvez o tal mistério de que falam.Foi isto o que sem pensar nem parar,Acertei que devia ser a verdadeQue todos andam a achar e que não acham,E que só eu, porque a não fui achar, achei. XLVIIIDa mais alta janela da minha casaCom um lenço branco digo adeusAos meus versos que partem para a Humanidade. 29
E não estou alegre nem triste.Esse é o destino dos versos.Escrevi-os e devo mostrá-los a todosPorque não posso fazer o contrárioComo a flor não pode esconder a cor,Nem o rio esconder que corre,Nem a árvore esconder que dá fruto.Ei-los que vão já longe como que na diligênciaE eu sem querer sinto penaComo uma dor no corpo.Quem sabe quem os terá?Quem sabe a que mãos irão?Flor, colheu-me o meu destino para os olhos.Árvore, arrancaram-me os frutos para as bocas.Rio, o destino da minha água era não ficar em mim.Submeto-me e sinto-me quase alegre,Quase alegre como quem se cansa de estar triste.Ide, ide de mim!Passa a árvore e fica dispersa pela Natureza.Murcha a flor e o seu pó dura sempre.Corre o rio e entra no mar e a sua água é sempre a que foi sua.Passo e fico, como o Universo. XLIXMeto-me para dentro, e fecho a janela.Trazem o candeeiro e dão as boas noites,E a minha voz contente dá as boas noites.Oxalá a minha vida seja sempre isto:O dia cheio de sol, ou suave de chuva,Ou tempestuoso como se acabasse o Mundo,A tarde suave e os ranchos que passamFitados com interesse da janela,O último olhar amigo dado ao sossego das árvores,E depois, fechada a janela, o candeeiro aceso,Sem ler nada, nem pensar em nada, nem dormir,Sentir a vida correr por mim como um rio por seu leito.E lá fora um grande silêncio como um deus que dorme. 30
O PASTOR AMOROSOQuando eu não te tinhaAmava a Natureza como um monge calmo a Cristo.Agora amo a NaturezaComo um monge calmo à Virgem Maria,Religiosamente, a meu modo, como dantes,Mas de outra maneira mais comovida e próxima ...Vejo melhor os rios quando vou contigoPelos campos até à beira dos rios;Sentado a teu lado reparando nas nuvensReparo nelas melhor —Tu não me tiraste a Natureza ...Tu mudaste a Natureza ...Trouxeste-me a Natureza para o pé de mim,Por tu existires vejo-a melhor, mas a mesma,Por tu me amares, amo-a do mesmo modo, mas mais,Por tu me escolheres para te ter e te amar,Os meus olhos fitaram-na mais demoradamenteSobre todas as cousas.Não me arrependo do que fui outroraPorque ainda o sou. (6.7.1914)Vai alta no céu a lua da PrimaveraPenso em ti e dentro de mim estou completo.Corre pelos vagos campos até mim uma brisa ligeira.Penso em ti, murmuro o teu nome; e não sou eu: sou feliz.Amanhã virás, andarás comigo a colher flores pelo campo,E eu andarei contigo pelos campos ver-te colher flores.Eu já te vejo amanhã a colher flores comigo pelos campos,Pois quando vieres amanhã e andares comigo no campo a colher flores,Isso será uma alegria e uma verdade para mim. (6.7.1914) 31
O amor é uma companhia.Já não sei andar só pelos caminhos,Porque já não posso andar só.Um pensamento visível faz-me andar mais depressaE ver menos, e ao mesmo tempo gostar bem de ir vendo tudo.Mesmo a ausência dela é uma coisa que está comigo.E eu gosto tanto dela que não sei como a desejar.Se a não vejo, imagino-a e sou forte como as árvores altas.Mas se a vejo tremo, não sei o que é feito do que sinto na ausência dela.Todo eu sou qualquer força que me abandona.Toda a realidade olha para mim como um girassol com a cara dela no meio. (10.7.1930)O pastor amoroso perdeu o cajado,E as ovelhas tresmalharam-se pela encosta,E de tanto pensar, nem tocou a flauta que trouxe para tocar.Ninguém lhe apareceu ou desapareceu.Nunca mais encontrou o cajado.Outros, praguejando contra ele, recolheram-lhe as ovelhas.Ninguém o tinha amado, afinal.Quando se ergueu da encosta e da verdade falsa, viu tudo:Os grandes vales cheios dos mesmos verdes de sempre,As grandes montanhas longe, mais reais que qualquer sentimento,A realidade toda, com o céu e o ar e os campos que existem, estão presentes.(E de novo o ar, que lhe faltara tanto tempo, lhe entrou fresco nos pulmões)E sentiu que de novo o ar lhe abria, mas com dor, uma liberdade no peito. (10.7.1930)Passei toda a noite, sem dormir, vendo, sem espaço, a figura dela,E vendo-a sempre de maneiras diferentes do que a encontro a ela.Faço pensamentos com a recordação do que ela é quando me fala,E em cada pensamento ela varia de acordo com a sua semelhança.Amar é pensar.E eu quase que me esqueço de sentir só de pensar nela.Não sei bem o que quero, mesmo dela, e eu não penso senão nela.Tenho uma grande distração animada.Quando desejo encontrá-laQuase que prefiro não a encontrar,Para não ter que a deixar depois.Não sei bem o que quero, nem quero saber o que quero. 32
Quero só Pensar nela.Não peço nada a ninguém, nem a ela, senão pensar. (23.7.1930)Todos os dias agora acordo com alegria e pena.Antigamente acordava sem sensação nenhuma; acordava.Tenho alegria e pena porque perco o que sonhoE posso estar na realidade onde está o que sonho.Não sei o que hei de fazer das minhas sensações.Não sei o que hei de ser comigo sozinho.Quero que ela me diga qualquer cousa para eu acordar de novo. 33
POEMAS INCONJUNTOS (1913-1915)Não basta abrir a janelaPara ver os campos e o rio.Não é bastante não ser cegoPara ver as árvores e as flores.É preciso também não ter filosofia nenhuma.Com filosofia não há árvores: há idéias apenas.Há só cada um de nós, como uma ave.Há só uma janela fechada, e todo o mundo lá fora;E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse,Que nunca é o que se vê quando se abre a janela.Falas de civilização, e de não dever ser,Ou de não dever ser assim.Dizes que todos sofrem, ou a maioria de todos,Com as cousas humanas postas desta maneira.Dizes que se fossem diferentes, sofreriam menos.Dizes que se fossem como tu queres, seria melhor.Escuto sem te ouvir.Para que te quereria eu ouvir?Ouvindo-te nada ficaria sabendo.Se as cousas fossem diferentes, seriam diferentes: eis tudo.Se as cousas fossem como tu queres, seriam só como tu queres.Ai de ti e de todos que levam a vidaA querer inventar a máquina de fazer felicidade!Entre o que vejo de um campo e o que vejo de outro campoPassa um momento uma figura de homem.Os seus passos vão com "ele" na mesma realidade,Mas eu reparo para ele e para eles, e são duas cousas:O "homem" vai andando com as suas idéias, falso e estrangeiro,E os passos vão com o sistema antigo que faz pernas andar.Olho-o de longe sem opinião nenhuma.Que perfeito que é nele o que ele é — o seu corpo,A sua verdadeira realidade que não tem desejos nem esperanças,Mas músculos e a maneira certa e impessoal de os usar. (20.4.1919) 34
Criança desconhecida e suja brincando à minha porta,Não te pergunto se me trazes um recado dos símbolos.Acho-te graça por nunca te ter visto antes,E naturalmente se pudesses estar limpa eras outra criança,Nem aqui vinhas.Brinca na poeira, brinca!Aprecio a tua presença só com os olhos.Vale mais a pena ver uma cousa sempre pela primeira vez que conhecê-la,Porque conhecer é como nunca ter visto pela primeira vez,E nunca ter visto pela primeira vez é só ter ouvido contar.O modo como esta criança está suja é diferente do modo como as outras estão [sujas.Brinca! pegando numa pedra que te cabe na mão,Sabes que te cabe na mão.Qual é a filosofia que chega a uma certeza maior?Nenhuma, e nenhuma pode vir brincar nunca à minha porta. (12.4.1919)Verdade, mentira, certeza, incerteza...Aquele cego ali na estrada também conhece estas palavras.Estou sentado num degrau alto e tenho as mãos apertadasSobre o mais alto dos joelhos cruzados.Bem: verdade, mentira, certeza, incerteza o que são?O cego pára na estrada,Desliguei as mãos de cima do joelhoVerdade mentira, certeza, incerteza são as mesmas?Qualquer cousa mudou numa parte da realidade — os meus joelhos e as minhas mãos.Qual é a ciência que tem conhecimento para isto?O cego continua o seu caminho e eu não faço mais gestos.Já não é a mesma hora, nem a mesma gente, nem nada igual.Ser real é isto. (12.4.1919)Uma gargalhada de rapariga soa do ar da estrada.Riu do que disse quem não vejo.Lembro-me já que ouvi.Mas se me falarem agora de uma gargalhada de rapariga da estrada,Direi: não, os montes, as terras ao sol o sol, a casa aqui,E eu que só oiço o ruído calado do sangue que há na minha vida dos dois [lados da cabeça. (12.4.1919) 35
Noite de S. João para além do muro do meu quintal.Do lado de cá, eu sem noite de S. João.Porque há S. João onde o festejam.Para mim há uma sombra de luz de fogueiras na noite,Um ruído de gargalhadas, os baques dos saltos.E um grito casual de quem não sabe que eu existo. (12.4.1919)Ontem o pregador de verdades deleFalou outra vez comigo.Falou do sofrimento das classes que trabalham(Não do das pessoas que sofrem, que é afinal quem sofre).Falou da injustiça de uns terem dinheiro,E de outros terem fome, que não sei se é fome de comer.Ou se é só fome da sobremesa alheia.Falou de tudo quanto pudesse fazê-lo zangar-se.Que feliz deve ser quem pode pensar na infelicidade dos outros!Que estúpido se não sabe que a infelicidade dos outros é deles,E não se cura de fora,Porque sofrer não é ter falta de tintaOu o caixote não ter aros de ferro!Haver injustiça é como haver morte.Eu nunca daria um passo para alterarAquilo a que chama a injustiça do mundo.Mil passos que desse para issoEram só mil passos.Aceito a injustiça como aceito uma pedra não ser redonda,E um sobreiro não ter nascido pinheiro ou carvalho.Cortei a laranja em duas, e as duas partes não podiam ficar iguaisPara qual foi injusto – eu, que as vou comer a ambas?Tu, místico, vês uma significação em todas as cousas.Para ti tudo tem um sentido velado.Há uma cousa oculta em cada cousa que vês.O que vês, vê-lo sempre para veres outra cousa.Para mim, graças a ter olhos só para ver,Eu vejo ausência de significação em todas as cousas; 36
Vejo-o e amo-me, porque ser uma cousa é não significar nada.Ser uma cousa é não ser susceptível de interpretação. (12.4.1919)Pastor do monte, tão longe de mim com as tuas ovelhas –Que felicidade é essa que pareces ter – a tua ou a minha?A paz que sinto quando te vejo, pertence-me, ou pertence-te?Não, nem a ti nem a mim, pastor.Pertence só à felicidade e à paz.Nem tu a tens, porque não sabes que a tens.Nem eu a tenho, porque sei que a tenho.Ela é ela só, e cai sobre nós como o sol,Que bate nas costas e te aquece, e tu pensas noutra cousa indiferentemente.E me bate na cara e me ofusca, e eu só penso no sol. (12.4.1919)Dizes-me: tu és mais alguma cousaQue uma pedra ou uma planta.Dizes-me: sentes, pensas e sabesQue pensas e sentes.Então as pedras escrevem versos?Então as plantas têm idéias sobre o mundo?Sim: há diferença.Mas não é a diferença que encontras;Porque o ter consciência não me obriga a ter teorias sobre as cousas:Só me obriga a ser consciente.Se sou mais que uma pedra ou uma planta? Não sei.Sou diferente. Não sei o que é mais ou menos.Ter consciência é mais que ter cor?Pode ser e pode não ser.Sei que é diferente apenas.Ninguém pode provar que é mais que só diferente.Sei que a pedra é a real, e que a planta existe.Sei isto porque elas existem.Sei isto porque os meus sentidos mo mostram.Sei que sou real também.Sei isto porque os meus sentidos mo mostram,Embora com menos clareza que me mostram a pedra e a planta.Não sei mais nada. 37
Sim, escrevo versos, e a pedra não escreve versos.Sim, faço idéias sobre o mundo, e a planta nenhumas.Mas é que as pedras não são poetas, são pedras;E as plantas são plantas só, e não pensadores.Tanto posso dizer que sou superior a elas por isto,Como que sou inferior.Mas não digo isso: digo da pedra, "é uma pedra",Digo da planta, "é uma planta",Digo de mim, "sou eu".E não digo mais nada. Que mais há a dizer?A espantosa realidade das cousasÉ a minha descoberta de todos os dias.Cada cousa é o que é,E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra,E quanto isso me basta.Basta existir para se ser completo.Tenho escrito bastantes poemas.Hei de escrever muitos mais. naturalmente.Cada poema meu diz isto,E todos os meus poemas são diferentes,Porque cada cousa que há é uma maneira de dizer isto.Às vezes ponho-me a olhar para uma pedra.Não me ponho a pensar se ela sente.Não me perco a chamar-lhe minha irmã.Mas gosto dela por ela ser uma pedra,Gosto dela porque ela não sente nada.Gosto dela porque ela não tem parentesco nenhum comigo.Outras vezes oiço passar o vento,E acho que só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido.Eu não sei o que é que os outros pensarão lendo isto;Mas acho que isto deve estar bem porque o penso sem estorvo,Nem idéia de outras pessoas a ouvir-me pensar;Porque o penso sem pensamentosPorque o digo como as minhas palavras o dizem.Uma vez chamaram-me poeta materialista, 38
E eu admirei-me, porque não julgavaQue se me pudesse chamar qualquer cousa.Eu nem sequer sou poeta: vejo.Se o que escrevo tem valor, não sou eu que o tenho:O valor está ali, nos meus versos.Tudo isso é absolutamente independente da minha vontade. (7.11.1915)Quando tornar a vir a PrimaveraTalvez já não me encontre no mundo.Gostava agora de poder julgar que a Primavera é gentePara poder supor que ela choraria,Vendo que perdera o seu único amigo.Mas a Primavera nem sequer é uma cousa:É uma maneira de dizer.Nem mesmo as flores tornam, ou as folhas verdes.Há novas flores, novas folhas verdes.Há outros dias suaves.Nada torna, nada se repete, porque tudo é real. (7.11.1915)Se eu morrer novo,Sem poder publicar livro nenhum,Sem ver a cara que têm os meus versos em letra impressa,Peço que, se se quiserem ralar por minha causa,Que não se ralem.Se assim aconteceu, assim está certo.Mesmo que os meus versos nunca sejam impressos,Eles lá terão a sua beleza, se forem belos.Mas eles não podem ser belos e ficar por imprimir,Porque as raízes podem estar debaixo da terraMas as flores florescem ao ar livre e à vista.Tem que ser assim por força. Nada o pode impedir.Se eu morrer muito novo, oiçam isto:Nunca fui senão uma criança que brincava.Fui gentio como o sol e a água,De uma religião universal que só os homens não têm.Fui feliz porque não pedi cousa nenhuma,Nem procurei achar nada,Nem achei que houvesse mais explicaçãoQue a palavra explicação não ter sentido nenhum. 39
Não desejei senão estar ao sol ou à chuva —Ao sol quando havia solE à chuva quando estava chovendo (E nunca a outra cousa),Sentir calor e frio e vento,E não ir mais longe.Uma vez amei, julguei que me amariam,Mas não fui amado.Não fui amado pela única grande razão —Porque não tinha que ser.Consolei-me voltando ao sol e à chuva,E sentando-me outra vez à porta de casa.Os campos, afinal, não são tão verdes para os que são amadosComo para os que o não são.Sentir é estar distraído. (7.11.1915)Quando vier a Primavera,Se eu já estiver morto,As flores florirão da mesma maneiraE as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada.A realidade não precisa de mim.Sinto uma alegria enormeAo pensar que a minha morte não tem importância nenhumaSe soubesse que amanhã morriaE a Primavera era depois de amanhã,Morreria contente, porque ela era depois de amanhã.Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo?Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo;E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse.Por isso, se morrer agora, morro contente,Porque tudo é real e tudo está certo.Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem.Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele.Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências.O que for, quando for, é que será o que é. (7.11.1915) 40
Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia,Não há nada mais simplesTem só duas datas — a da minha nascença e a da minha morte.Entre uma e outra cousa todos os dias são meus.Sou fácil de definir.Vi como um danado.Amei as cousas sem sentimentalidade nenhuma.Nunca tive um desejo que não pudesse realizar, porque nunca ceguei.Mesmo ouvir nunca foi para mim senão um acompanhamento de ver.Compreendi que as cousas são reais e todas diferentes umas das outras;Compreendi isto com os olhos, nunca com o pensamento.Compreender isto com o pensamento seria achá-las todas iguais.Um dia deu-me o sono como a qualquer criança.Fechei os olhos e dormi.Além disso, fui o único poeta da Natureza.É noite. A noite é muito escura. Numa casa a uma grande distânciaBrilha a luz duma janela.Vejo-a, e sinto-me humano dos pés à cabeça.É curioso que toda a vida do indivíduo que ali mora, e que não sei quem é,Atrai-me só por essa luz vista de longe.Sem dúvida que a vida dele é real e ele tem cara, gestos, família e profissão.Mas agora só me importa a luz da janela dele.Apesar de a luz estar ali por ele a ter acendido,A luz é a realidade imediata para mim.Eu nunca passo para além da realidade imediata.Para além da realidade imediata não há nada.Se eu, de onde estou, só vejo aquela luz,Em relação à distância onde estou há só aquela luz.O homem e a família dele são reais do lado de lá da janela.Eu estou do lado de cá, a uma grande distância.A luz apagou-se.Que me importa que o homem continue a existir? (8.11.1915)Nunca sei como é que se pode achar um poente triste.Só se é por um poente não ter uma madrugada.Mas se ele é um poente, como é que ele havia de ser uma madrugada?8.11.1915 41
Um dia de chuva é tão belo como um dia de sol.Ambos existem; cada um como é. (8.11.1915)Quando a erva crescer em cima da minha sepultura,Seja este o sinal para me esquecerem de todo.A Natureza nunca se recorda, e por isso é bela.E se tiverem a necessidade doentia de "interpretar" a erva verde [sobre a minha sepultura,Digam que eu continuo a verdecer e a ser natural. (8.11.1915)Se o homem fosse, como deveria ser,Não um animal doente, mas o mais perfeito dos animais.Animal directo e não indirecto,Devia ser outra a sua forma de encontrar um sentido às cousas,Outra e verdadeira.Devia haver adquirido um sentido do "conjunto";Um sentido como ver e ouvir do "total" elas cousasE não, como temos, um pensamento do "conjunto";E não, como temos, uma idéia, do "total" das cousas.E assim — veríamos — não teríamos noção do "conjunto" ou do "total",Porque o sentido do "total" ou do "conjunto" não vem de um total ou de um [conjuntoMas da verdadeira Natureza talvez nem todo nem partes. (1.10.1917)O único mistério do Universo é o mais e não o menos.Percebemos demais as cousas — eis o erro, a dúvida.O que existe transcende para mim o que julgo que existe.A Realidade é apenas real e não pensada.(1.10.1917)O universo não é uma idéia minha.A minha idéia do Universo é que é uma idéia minha.A noite não anoitece pelos meus olhos,A minha idéia da noite é que anoitece por meus olhos.Fora de eu pensar e de haver quaisquer pensamentosA noite anoitece concretamenteE o fulgor das estrelas existe como se tivesse peso. 42
(1.10.1917Assim como falham as palavras quando querem exprimir qualquer [pensamento,Assim falham os pensamentos quando querem exprimir qualquer realidade,Mas, como a realidade pensada não é a dita mas a pensada.Assim a mesma dita realidade existe, não o ser pensada.Assim tudo o que existe, simplesmente existe.O resto é uma espécie de sono que temos, infância da doença.Uma velhice que nos acompanha desde a infância da doença. (1.10.1917)O espelho reflecte certo; não erra porque não pensa.Pensar é essencialmente errar.Errar é essencialmente estar cego e surdo. (1.10.1917)Estas verdades não são perfeitas porque são ditas.E antes de ditas pensadas.Mas no fundo o que está certo é elas negarem-se a si próprias.Na negação oposta de afirmarem qualquer cousa.A única afirmação é ser.E ser o oposto é o que não queria de mim. (1.10.1917)A criança que pensa em fadas e acredita nas fadasAge como um deus doente, mas como um deus.Porque embora afirme que existe o que não existeSabe como é que as cousas existem, que é existindo,Sabe que existir existe e não se explica,Sabe que não há razão nenhuma para nada existir,Sabe que ser é estar em um pontoSó não sabe que o pensamento não é um ponto qualquer. (1.10.1917)De longe vejo passar no rio um navio...Vai Tejo abaixo indiferentemente.Mas não é indiferentemente por não se importar comigoE eu não exprimo desolação com isto.É indiferentemente por não ter sentido nenhum 43
Externo ao fato [...........] amente navioDe ir rio abaixo sem [rumo (?)] de metafísicaRio abaixo até à realidade do mar. (1.10.1917)Creio que irei morrer.Mas o sentido de morrer não me move,Lembro-me que morrer não deve ter sentido.Isto de viver e morrer são classificações como as das plantas.Que folhas ou que flores têm uma classificação?Que vida tem a vida ou que morte a morte?Tudo são termos onde se define.(?) [Um verso ilegível e incompleto.] (1.10.1917)A noite desce, o calor soçobra um pouco,Estou lúcido como se nunca tivesse pensadoE tivesse raiz, ligação direta com a terraNão esta espécie de ligação de sentido secundário observado à noite.À noite quando me separo das cousas,E maproximo das estrelas ou constelações distantes —Erro: porque o distante não é o próximo,E aproximá-lo é enganar-me. (1.10.1917)Estou doente. Meus pensamentos começam a estar confusosMas o meu corpo, tirado às cousas, entra nelas.Sinto-me parte das cousas com .............................E uma grande libertação começa a fazer-se em mim,Uma grande alegria solene como a de eu estar vem(?) [Um verso ilegível.] (1.10.1917)Quando está frio no tempo do frio, para mim é como se estivesse agradável,Porque para o meu ser adequado à existência das cousasO natural é o agradável só por ser natural.Aceito as dificuldades da vida porque são o destino,Como aceito o frio excessivo no alto do Inverno —Calmamente, sem me queixar, como quem meramente aceita, 44
E encontra uma alegria no fato de aceitar —No fato sublimemente científico e difícil de aceitar o natural inevitável.Que são para mim as doenças que tenho e o mal que me aconteceSenão o Inverno da minha pessoa e da minha vida?O Inverno irregular, cujas leis de aparecimento desconheço,Mas que existe para mim em virtude da mesma fatalidade sublime,Da mesma inevitável exterioridade a mim,Que o calor da terra no alto do VerãoE o frio da terra no cimo do Inverno.Aceito por personalidade.Nasci sujeito como os outros a erros e a defeitos,Mas nunca ao erro de querer compreender demais,Nunca ao erro de querer compreender só com a inteligência,Nunca ao defeito de exigir do MundoQue fosse qualquer cousa que não fosse o Mundo. (24.10.1917)Seja o que for que esteja no centro do Mundo,Deu-me o mundo exterior por exemplo de Realidade,E quando digo "isto é real", mesmo de um sentimento,Vejo-o sem querer em um espaço qualquer exterior,Vejo-o com uma visão qualquer fora e alheio a mim.Ser real quer dizer não estar dentro de mim.Da minha pessoa de dentro não tenho noção de realidade.Sei que o mundo existe, mas não sei se existo.Estou mais certo da existência da minha casa brancaDo que da existência interior do dono da casa branca.Creio mais no meu corpo do que na minha alma,Porque o meu corpo apresenta-se no meio da realidade.Podendo ser visto por outros,Podendo tocar em outros,Podendo sentar-se e estar de pé,Mas a minha alma só pode ser definida por termos de fora.Existe para mim — nos momentos em que julgo que efetivamente existe —Por um empréstimo da realidade exterior do MundoSe a alma é mais realQue o mundo exterior como tu, filósofos, dizes,Para que é que o mundo exterior me foi dado como tipo da realidade" 45
Se é mais certo eu sentirDo que existir a cousa que sinto —Para que sintoE para que surge essa cousa independentemente de mimSem precisar de mim para existir,E eu sempre ligado a mim-próprio, sempre pessoal e intransmissível?Para que me movo com os outrosEm um mundo em que nos entendemos e onde coincidimosSe por acaso esse mundo é o erro e eu é que estou certo?Se o Mundo é um erro, é um erro de toda a gente.E cada um de nós é o erro de cada um de nós apenas.Cousa por cousa, o Mundo é mais certo.Mas por que me interrogo, senão porque estou doente?Nos dias certos; nos dias exteriores da minha vida,Nos meus dias de perfeita lucidez natural,Sinto sem sentir que sinto,Vejo sem saber que vejo,E nunca o Universo é tão real como então,Nunca o Universo está (não é perto ou longe de mim.Mas) tão sublimemente não-meu.Quando digo "é evidente", quero acaso dizer "só eu é que o vejo"?Quando digo "é verdade", quero acaso dizer "é minha opinião"?Quando digo "ali está", quero acaso dizer "não está ali"?E se isto é assim na vida, por que será diferente na filosofia?Vivemos antes de filosofar, existimos antes de o sabermos,E o primeiro fato merece ao menos a precedência e o culto.Sim, antes de sermos interior somos exterior.Por isso somos exterior essencialmente.Dizes, filósofo doente, filósofo enfim, que isto é materialismo.Mas isto como pode ser materialismo, se materialismo é uma filosofia,Se uma filosofia seria, pelo menos sendo minha, uma filosofia minha,E isto nem sequer é meu, nem sequer sou eu? (24.10.1917)Pouco me importa.Pouco me importa o quê? Não sei: pouco me importa. (24.10.1917) 46
A guerra que aflige com os seus esquadrões o Mundo,É o tipo perfeito do erro da filosofia.A guerra, como todo humano, quer alterar.Mas a guerra, mais do que tudo, quer alterar e alterar muitoE alterar depressa.Mas a guerra inflige a morte.E a morte é o desprezo do Universo por nós.Tendo por conseqüência a morte, a guerra prova que é falsa.Sendo falsa, prova que é falso todo o querer alterar.Deixemos o universo exterior e os outros homens onde a Natureza os pôs.Tudo é orgulho e inconsciência.Tudo é querer mexer-se, fazer cousas, deixar rasto.Para o coração e o comandante dos esquadrõesRegressa aos bocados o universo exterior.A química direta da NaturezaNão deixa lugar vago para o pensamento.A humanidade é uma revolta de escravos.A humanidade é um governo usurpado pelo povo.Existe porque usurpou, mas erra porque usurpar é não ter direito.Deixai existir o mundo exterior e a humanidade natural!Paz a todas as cousas pré-humanas, mesmo no homem!Paz à essência inteiramente exterior do Universo! (29.5.1918)Todas as opiniões que há sobre a NaturezaNunca fizeram crescer uma erva ou nascer uma flor.Toda a sabedoria a respeito das cousasNunca foi cousa em que pudesse pegar como nas cousas;Se a ciência quer ser verdadeira,Que ciência mais verdadeira que a das cousas sem ciência?Fecho os olhos e a terra dura sobre que me deitoTem uma realidade tão real que até as minhas costas a sentem.Não preciso de raciocínio onde tenho espáduas. (29.5.1918) 47
Navio que partes para longe,Por que é que, ao contrário dos outros,Não fico, depois de desapareceres, com saudades de ti?Porque quando te não vejo, deixaste de existir.E se se tem saudades do que não existe,Sinto-a em relação a cousa nenhuma;Não é do navio, é de nós, que sentimos saudade. (29.5.1918)Pouco a pouco o campo se alarga e se doura.A manhã extravia-se pelos irregulares da planície.Sou alheio ao espetáculo que vejo: vejo-o,É exterior a mim. Nenhum sentimento me liga a ele.E é esse sentimento que me liga à manhã que aparece. (29.5.1918)Última estrela a desaparecer antes do dia,Pouso no teu trêmulo azular branco os meus olhos calmos,E vejo-te independentemente de mim;Alegre pelo critério (?) que tenho em poder ver-teSem "estado de alma" nenhum, sonho ver-te.A tua beleza para mim está em existiresA tua grandeza está em existires inteiramente fora de mim. (29.5.1918)A água chia no púcaro que elevo à boca.«É um som fresco» diz-me quem me dá a bebê-la.Sorrio. O som é só um som de chiar.Bebo a água sem ouvir nada com a minha garganta. (29.5.1918)O que ouviu os meus versos disse-me: "Que tem isso de novo?Todos sabem que uma flor é uma flor e uma árvore é uma árvore.Mas eu respondi, nem todos, (?.......... )Porque todos amam as flores por serem belas, e eu sou diferenteE todos amam as árvores por serem verdes e darem sombra, mas eu não.Eu amo as flores por serem flores, diretamente.Eu amo as árvores por serem árvores, sem o meu pensamento. (29.5.1918) 48
Ah! querem uma luz melhor que a do Sol!Querem prados mais verdes do que estes!Querem flores mais belas do que estas que vejo!A mim este Sol, estes prados, estas flores contentam-me.Mas, se acaso me descontentam,O que quero é um sol mais sol que o Sol,O que quero é prados mais prados que estes prados,O que quero é flores mais estas flores que estas flores —Tudo mais ideal do que é do mesmo modo e da mesma maneira!12.4.1919Gozo os campos sem reparar para eles.Perguntas-me por que os gozo.Porque os gozo, respondo.Gozar uma flor é estar ao pé dela inconscientementeE ter uma noção do seu perfume nas nossas idéias mais apagadas.Quando reparo, não gozo: vejo.Fecho os olhos, e o meu corpo, que está entre a erva,Pertence inteiramente ao exterior de quem fecha os olhosÀ dureza fresca da terra cheirosa e irregular;E alguma cousa dos ruídos indistintos das cousas a existir,E só uma sombra encarnada de luz me carrega levemente nas órbitas,E só um resto de vida ouve. (20.4.1919)Vive, dizes, no presente,Vive só no presente.Mas eu não quero o presente, quero a realidade;Quero as cousas que existem, não o tempo que as mede.O que é o presente?É uma cousa relativa ao passado e ao futuro.É uma cousa que existe em virtude de outras cousas existirem.Eu quero só a realidade, as cousas sem presente.Não quero incluir o tempo no meu esquema.Não quero pensar nas cousas como presentes; quero pensar nelas como cousas.Não quero separá-las de si-próprias, tratando-as por presentes. 49
Eu nem por reais as devia tratar.Eu não as devia tratar por nada.Eu devia vê-las, apenas vê-las;Vê-las até não poder pensar nelas,Vê-las sem tempo, nem espaço,Ver podendo dispensar tudo menos o que se vê.É esta a ciência de ver, que não é nenhuma. (19.7.1920)Hoje de manhã saí muito cedo,Por ter acordado ainda mais cedoE não ter nada que quisesse fazer...Não sabia por caminho tomarMas o vento soprava forte, varria para um lado,E segui o caminho para onde o vento me soprava nas costas.Assim tem sido sempre a minha vida, eassim quero que possa ser sempre —Vou onde o vento me leva e não meSinto pensar. (13.6.1930)Primeiro prenúncio de trovoada de depois de amanhã.As primeiras nuvens, brancas, pairam baixas no céu mortiço,Da trovoada de depois de amanhã?Tenho a certeza, mas a certeza é mentira.Ter certeza é não estar vendo.Depois de amanhã não há.O que há é isto:Um céu de azul, um pouco baço, umas nuvens brancas no horizonte,Com um retoque de sujo embaixo como se viesse negro depois.Isto é o que hoje é,E, como hoje por enquanto é tudo, isto é tudo.Quem sabe se eu estarei morto depois de amanhã?Se eu estiver morto depois de amanhã, a trovoada de depois de amanhãSerá outra trovoada do que seria se eu não tivesse morrido.Bem sei que a trovoada não cai da minha vista,Mas se eu não estiver no mundo.O mundo será diferente —Haverá eu a menos —E a trovoada cairá num mundo diferente e não será a mesma trovoada. 50
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(10.7.1930)Também sei fazer conjeturas.Há em cada cousa aquilo que ela é que a anima.Na planta está por fora e é urna ninfa pequena.No animal é um ser interior longínquo.No homem é a alma que vive com ele e é já ele.Nos deuses tem o mesmo tamanhoE o mesmo espaço que o corpoE é a mesma cousa que o corpo.Por isso que se diz que os deuses nunca morrem.Por isso os deuses não têm corpo e almaMas só corpo e são perfeitos.O corpo é que lhes é almaE têm a consciência na própria carne divina.A neve pôs uma toalha calada sobre tudo.Não se sente senão o que se passa dentro de casa.Embrulho-me num cobertor e não penso sequer em pensar.Sinto um gozo de animal e vagamente penso,E adormeço sem menos utilidade que todas as ações do mundo.É talvez o último dia da minha vida.Saudei o sol, levantando a mão direita,Mas não o saudei, dizendo-lhe adeus,Fiz sinal de gostar de o ver antes: mais nada. 51
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