sábado, 10 de setembro de 2011
DUPLA PERSONALIDADE DE JUNG
José Náufel
Expositor do ICEB, Advogado
NO seu livro autobiográfico Memórias, Sonhos, Reflexões, narra o notável psicólogo Carl Gustav Jung que, certa feita, quando ainda menino, tendo sido convidado para passar férias com uma família amiga que possuía casa à beira do Lago de Lucerna, foi repreendido pelo anfitrião por cometer a imprudência de ficar de pé na popa de um barquinho, em que passeava com o filho do dono da casa, empurrando-o com o remo para o meio do lago.
"Cabisbaixo, escreve ele, reconheci que fizera justamente o que fora proibido: a repreensão era, pois, merecida. Mas, ao mesmo tempo, senti uma raiva imensa de que aquele homem grosseiro, gordo e sem instrução, ousasse insultar-me, a mim! E não me sentia apenas como um ser adulto, mas como uma autoridade, uma pessoa cheia de importância e de dignidade, um homem idoso ao qual se deve manifestar respeito e veneração." (Ob. cito Rio, 1981, Ed. Nova Fronteira, 4a ed., pp. 42 e 43).
Mais adiante, explicita esse estranho sentimento, nestes termos:
"Perturbadíssimo, tomei consciência de que, na realidade, "havia em mim duas pessoas diferentes": uma delas era o menino de colégio que não compreendia matemática e que se caracterizava pela insegurança; o outro era um homem importante, de grande autoridade, com quem não se podia brincar—mais poderoso e influente do que aquele industrial.
Era velho, que—vivia no século XVIII, usava sapatos de fivela, peruca branca e tinha, como meio de transporte, uma caleça cujas rodas de trás eram grandes e côncavas e entre as quais o assento do cocheiro ficava suspenso por meio de molas e correias de couro. " (P. 43; os destaques não são do original).
Note-se que Jung não se refere a uma duplicidade de sentimentos. Ele poderia sentir-se culpado e, ao mesmo tempo, insultado; criança, mas pessoa com dignidade. Não, ele diz que havia nele duas pessoas diferentes, uma, o menino estudante comum, e a outra, um homem importante, pessoa influente, de grande autoridade. O detalhe cresce quando define, de modo muito objetivo: o outro que ele era simultaneamente "vivia no século XVIII, usava sapatos de fivela, peruca branca e tinha, como meio de transporte, uma caleça...", que descreve minuciosamente.
Logo a seguir, ele narra dois outros acontecimentos que reforçam essa dupla personalidade. Eis o primeiro:
"Tivera antes uma experiência estranha: certo dia, quando habitávamos em Klei-Huningen, perto de Basiléia, um fiacre verde, muito velho, passara diante da nossa casa vindo da Floresta Negra.
Era uma caleça antiga como as do século XVIII. Assim que a vi, um sentimento de exaltação se apoderou de mim: "Ah, ei-la! É do meu tempo!" Tinha a impressão de reconhecê-la, era semelhante àquela que me transportaria! Depois fui invadido por um sentiment écoeurant, como se tivesse sido roubado ou ludibriado no tocante ao meu amado outrora. O fiacre era um vestígio daquele tempo! "É difícil descrever o que se passou comigo e o que me emocionou tão fortemente: uma espécie de nostalgia? Uma saudade? "Era isso, exatamente isso! "
O outro acontecimento está ligado a uma estatueta do século XVIII que ele vira na casa de uma tia. Representava duas personagens em terracota. Uma delas era o velho Dr. Stuckelberger, personalidade famosa da cidade de Basiléia, e a outra, uma de suas doentes. Jung comenta: "Ora, a figura do velho doutor tinha sapatos de fivela que reconheci estranhamente como meus. Estava convencido disso. Usei esses sapatos'. Esta convicção me perturbara de um modo profundo.
"Sim, eram realmente os meus sapatos!" Eu os sentia nos pés e não podia compreender essa estranha sensação. Como poderia pertencer ao século XVIII?"
Ele, que nascera em 1875 (século XIX, portanto), referindo-se às reminiscências dos seus onze anos, assinala: "Acontecia-me às vezes, datando, escrever 1786 em lugar de 1886 e isso era sempre seguido de um sentimento inexplicável de nostalgia." (ob. cit., p. 44). Refletindo sobre tudo isso, conclui: "As impressões até então isoladas se condensaram numa imagem homogênea: vivo em duas épocas diferentes, sou duas pessoas diversas."
Cumpre assinalar que ele não via qualquer aspecto patológico nessa dupla personalidade, como faz questão de explicar: "O jogo alternado das personalidades n° 1 (sua personalidade atual) e no 2 ("o outro"), que persistiu no decorrer da minha vida, não tem nada em comum com a 'dissolução', no sentido médico habitual. Pelo contrário, tal dinâmica se desenrola em todo indivíduo."(p. 52).
Ele chama a personalidade n° 2 de "homem interior", ao qual se dirigem as religiões, "uma figura típica que só é sentida por poucas pessoas. A compreensão consciente da maioria não é suficiente para perceber sua existência."
Em determinado momento, ele se pergunta se esse jogo alternado de personalidades não guardaria relação com as numerosas histórias que ouvira de seus pais e de outros parentes acerca de seu avô, Carl Gustav Jung (17941864). Mas, logo admite que "tal hipótese não era muito convincente, pois ele nascera em 1794, vivendo, por conseguinte, quase só no século XIX. Além disso, morrera muito antes do meu nascimento. Era impossível, pois, identificar-me com ele". A idéia de ser eventual reencarnação do avô também não Ihe era aceitável, porquanto proclamava: "Não acredito na reencarnação", embora tenha acrescentado: "mas a idéia do Carma dos hindus me é naturalmente familiar". (Ob. cit., p.209).
Aqui, abrimos parênteses para supor que ele poderia, no entanto, ter sido reencarnação do seu bisavô, Franz Ignaz Jung, que viveu de 1759 a 1831 e que, em 1786—data que o nosso Jung punha, nostálgica e "equivocadamente", nos seus escritos—contava vinte anos de idade.
Essa dupla personalidade confessada por Jung foi excepcionalmente consciente e para ela não há outra explicação que não a de ser resultante da realidade reencarnatória, um corolário das vidas sucessivas. O esquecimento do passado fez-se menos intensamente nele e esse passado fluía, com certa intensidade, do inconsciente para o consciente. Tanto que ele foi "levado à idéia de que existem elementos arcaicos na alma, que não penetraram na alma individual a partir de uma tradição qualquer". Referia-se certamente a um aspecto excepcional da sua teoria dos Arquétipos e do Inconsciente Coletivo.
Fonte: Presença Espírita, Salvador Bahia – janeiro
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