quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011
SABEDORIA DA MATURIDADE INDEPENDENTE
Filme Socialismo é o mais godardiano dos filmes de Godard
By: Bruno Cava
“Filme Socialismo” não é um produto imediatamente consumível. O fato de Jean-Luc Godard assiná-lo não é acessório. Pelo contrário, constitui informação crucial e indispensável. A autoria desse filme condiciona a experiência de assistir. Por isso, não adianta o espectador ir ao cinema sem um pacto prévio com o autor, sem uma predisposição para refletir, mastigar, digerir, experimentar.
Se não fosse assinado por Godard? Ora, a questão é retórica e não cabe. Seria outro filme. De uma forma ou de outra, vai-se ao cinema preparado para assistir a um Godard. Não fosse para o veterano cineasta produzir um filme assim, um filme godardiano, não haveria o menor sentido a esta altura do campeonato. Jean-Luc conta 80 anos e não está para brincadeiras.
“Filme Socialismo” é arte na sua acepção mais “dura”. Embora, como estilo, remeta mais à filmografia dele dos anos 2000, como “Elogio do Amor” (2001) ou “Nossa Música” (2004), o longa reafirma um imperativo presente desde seu primeiro longa – “Acossado”, de 1960. Desde o princípio, Godard se propôs a firmar o cinema como arte moderna, tão rigorosa e polivalente quanto a pintura ou a literatura. E a identificar no diretor a figura autoral, ou seja, o artista propriamente dito, que imprime uma estética, assina a obra e por ela responde diante dos públicos.
Como se sabe, o ímpeto por autonomia artística/autoral inaugurou o modernismo da nouvelle vague, associada aos críticos-cineastas da geração clássica da revista Cahiers du Cinéma (Truffaut, Rivette, Rohmer, Chabrol et al), responsáveis por uma seqüência de obras plenas de estilo, ao longo dos anos 60.
Talvez por isso, haja a percepção mais ou menos generalizada que “Filme Socialismo” não facilite a vida do espectador. Não são poucos a sair aturdidos, desconsolados e mesmo irritados da sala de projeção. Outros, com expressão marota, podem contemporizar: “É assim mesmo com Godard, o que você esperava?”. O que só agrava o descontentamento, ao passar a impressão de tratar-se de um filme maçônico, só para os iniciados no hermetismo godardiano.
O caso é que o diretor parisiense sempre se guiou pelo desejo de inovar, de reinventar formas, de reconstruir-se na sua trajetória cinematográfica, ultrapassando a si mesmo. Por um lado, desde cedo, sua excentricidade por assim dizer deliberada produziu uma mitologia ao redor de sua figura. Por outro, nem por isso, por essa vaidade, fica descaracterizada a robustez e originalidade de sua obra, repleta de guinadas e reavaliações. “Filme Socialismo” ressalta um cinema de reinvenção, que efetivamente pensa o meio que o possibilita e produz – como suporte, dispositivo, metiê, linguagem, construção de sentidos etc. Modernismo oblige.
Com “Filme Socialismo”, atinge-se um patamar que, na literatura, foi alcançado pela obra de James Joyce. Por mais anacrônica e leviana a comparação, o filme causa uma sensação próxima a ler “Ulysses” ou “Finnegans Wake”. Ou seja, provoca um misto de desafio, espanto e intriga.
Entre Joyce e Godard traçam-se várias paralelas. Como nos romances joyceanos, em “Filme Socialismo” vislumbram-se o fluxo de consciência, a subjetividade transbordante, as múltiplas camadas narrativas de sentido – tudo isso numa colagem intrincada de signos e elementos do imaginário, da mitologia, da história, da política, do próprio cinema. Como em “Finnegans Wake”, o conjunto não admite síntese ou sinopse, numa lógica fragmentária, em que cada fragmento desestabiliza a narrativa como um todo e estilhaça o tempo-espaço. Sobram cacos de imagens e ruídos.
“Filme Socialismo” também é convergência e aperfeiçoamento de outros projetos de Godard. Os personagens questionam o seu estatuto como personagens, e têm consciência de participar de um filme, como em “Cármen de Godard” (1983) ou “Detetive” (1985). Aprofunda-se o ensaio com o digital de “Elogio do Amor” (2001), graças à filmagem em HD, formato 16:9, recheada de cores intensas (em especial o azul, o dourado, o azul-turquesa) e colossais planos das paisagens mediterrâneas. Como em “Nossa Música” (2004), a fábula estrutura-se em três movimentos, embora não siga mais a evolução da Divina Comédia.
Sobretudo, “Filme Socialismo” retoma a “História do Cinema” (1988-98), cujos 240 minutos são agora condensados para exprimir o sentimento do século, na sua irracionalidade, barbárie, incompreensão e tragicidade. Como na “História do Cinema”, a imagem não cessa de expor e expor-se, toma posição no fluxo da história e constitui uma memória. Realidade e ficção, história e cinema entretecem-se num mosaico incongruente.
No conjunto, a descontinuidade domina nas várias instâncias: a montagem conflitiva, o áudio dissonante, o enredo em tríptico, a dramaturgia anti-diegética e a encenação des-dramatizante. Há uma enxurrada de citações dos mais diversos pensadores do contemporâneo, na boca dos personagens e do narrador em off.
De tempos em tempos, letras garrafais sobre fundo negro pontuam os “capítulos”, até o derradeiro “No Comment”. Menos que pernosticismo ou intelectualismo (Godard merece um pouco mais de crédito), está em causa a investigação de traços, pistas e lampejos de acontecimentos, na sua precariedade. Nessa direção, as escadarias de Odessa (Eisenstein), o grande ditador (Chaplin), o velho oeste (Ford) e imagens documentais sobre guerras, fascismos, comoções.
Com o tour de force de montagem, Godard tenta tirar lascas de questões graníticas e ultimamente insolúveis: representar o irrepresentável, exprimir o inexprimível, aceitar o inaceitável. Desvela-se assim a afinidade entre “Filme Socialismo” e a filosofia da história de Walter Benjamin. O filósofo sondava fragmentos da revolução no continuum da história. E admitia, como faz o filme, a natureza contraditória e problemática da cultura. Daí a melancolia que permeia o longa, consciente de seu caráter inescapável como parte do sistema, como integrante da tradição dos vencedores. Godard sabe que seu manifesto ultramoderno deve ser diluído e neutralizado, na lógica de consumo cultural de hoje. Mas não se mostra pessimista. É romântico.
Como uma filmografia tão prenhe de realismo, inspirada por André Bazin nos anos 1950, pode convergir a tão confesso socialismo utópico? Ora, o realismo autêntico tem a utopia em seu núcleo. “Filme Socialismo” é uma quimera. Não pode existir um filme assim e é precisamente por causa disso que tanto precisamos dele. Godard ainda pulsa.
.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário