domingo, 23 de maio de 2010
HOMENAGEM A UMA GRANDE MULHER
Simone de Beauvoir e a emancipação da mulher
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Em 1857, a sociedade francesa escandalizou-se com a publicação de uma novela dramática de Gustave Flaubert. Tratava-se de um relato ficcional, escrito com crueza e realismo, sobre a esposa de um médico rural, Ema Bovary, que depois de ter praticado adultério se suicidara. Livro que serviu de velada condenação ao comportamento feminino e das forças que se combinavam por desgraçar a mulher. Quase um século depois, em 1949, a mesma sociedade foi novamente abalada, desta vez por um contundente ensaio publicado por uma das mais famosas escritoras do país: Simone de Beauvoir. O título era O Segundo Sexo, livro que desde então correu o mundo e contribuiu definitivamente para a emancipação da mulher contemporânea.
Uma crônica de lutas
Simone de Beauvoir (1908-1986)
Simone de Beauvoir, todavia, não deve ser entendia como um fenômeno exclusivo da sua época, do século XX, o centênio que mais estendeu cidadania e direitos às mulheres em geral. Ao contrário, era herdeira de uma tradição de engajamento nas causas femininas que se originava dos tempos da Revolução Francesa de 1789, quando mulheres como Theroigine de Méricourt, fundara o clube misto dos Amigos da Lei, em 1790, e Olympe de Gouges, redigira a Déclaration des droits de la femme et de la citoyenne, de 1791, documento histórico primeiro a reclamar abertamente os direitos iguais para homens e mulheres.
Exigência que foi ainda mais reforçada pela exuberante Flora Tristan, militante socialista, autora de Peregrinações de uma paria, de 1837, e do União Operária, de 1843, defensora da igualdade de operários e operárias, luta que teve continuidade na formação dos Batalhões Femininos da República que saíram às ruas da França na defesa do cumprimento da Lei Ferry, de 1881, que determinava ao acesso das mulheres ao ensino público.
Mesmo com esse ativismo militante, as mulheres francesas chegaram tardiamente à cidadania, apenas consagrada na constituição de 1946. Muito depois das americanas, inglesas, alemãs e russas que alcançaram o direito de voto bem antes delas, ao redor de 1918.
Um casal sui generis
Sartre e Simone
Simone-Ernestine-Lucie-Marie Bertrand de Beauvoir, nascida em Paris, em 9 de janeiro de 1908, apelidada de Castor pelos colegas da academia, egressa do Instituo Católico Santa Maria, foi a mais jovem estudante a ser aprovada nos rigorosos exames da Faculdade de Filosofia da Universidade de Sorbone, o aggrégation.
Graduou-se obtendo o diploma com uma tese sobre Leibniz. Não tardou a ligar-se a Jean-Paul Sartre, três anos mais velho do que ela, tido como uma das maiores promessas da filosofia francesa, com quem fez um pacto, ao redor do ano de 1929. Comprometeram-se os dois a ter uma relação aberta e dedicarem-se integralmente à literatura e à filosofia, abdicando de terem um lar e filhos. Tornaram-se para sempre devotos da palavra escrita, ao sacerdócio das letras e do pensamento.
Naquela época tal atitude assumida por pessoas da classe média, ainda que intelectualizada e culta, era vista simplesmente como um escândalo, quase uma abominação. Como uma jovem mulher que descendia do patriciado parisiense, cujo pai tinha veleidades de nobreza, podia simplesmente abdicar de vir a ser esposa e mãe?
Nomeada professora, Simone exerceu por pouco tempo o magistério em Marselha e depois em Ruão, onde ficou mais próxima de Sartre que assumira classes no porto atlântico do Le Havre. Não tardou para que ela conseguisse dedicar-se exclusivamente às letras, fazendo seu primeiro sucesso com o livro L´invitée (A Convidada), publicado em 1943, em plena França ocupada pelos nazistas. Desde aquele primeiro livro ela pautou sua ficção no sentido de expor o mundo que a cercava. As histórias que narrou ou tinham sido vividas por ela e por Sartre, evidentemente como nomes fictícios, ou por casos que os mais próximos lhe contavam.
A vida livre e um tanto boêmia que o reduzido grupo de intelectuais e escritores levava exerceu uma enorme atração junto ao público em geral, condenado a uma rotina apagada, anônima ou medíocre. Parecia que eles, os personagens de Simone, não se encontravam sujeitos às convenções, muito menos inclinados a seguir o rebanho. Viviam de acordo com regras muito próprias, tal como Simone e Sartre estabeleceram para si.
Encontravam-se a toda hora em reuniões fortuitas nos cafés da moda do Boulevard Saint-Germain – no Deux Magots e no Fiore - com romancistas, poetas, pintores, atores e atrizes, diretores de cinema e gente de teatro, entretendo-se horas ao lado de Pablo Picasso, Pierre Brasseur ou de Jean Cocteau.
Tão férteis eram tais encontros que Simone testemunhou que o começo do interesse de Jean-Paul Sartre pela fenomenologia, que mais tarde gerou o livro famoso dele intitulado O Ser e o Nada, deu-se num desses cafés de Paris quando Raymond Aron (que bem mais tarde tornou-se ideologicamente contrário a Sartre), recém voltando de Berlim, em 1931, disse-lhe que, segundo Husserl, era possível filosofar sobre um copo e o seu conteúdo. Era o estalo que ele precisava para ir em frente no seu estudo da unidade indivisa de mente-e-corpo e o mundo que a cerca, na busca da superação da dualidade entre a aparência(fenômeno) e a essência(nômeno), entre o Materialismo versus Idealismo.(*)
Esse planeta incomum dos intelectuais, artistas e boêmios, movido a livros, licores e vinhos, foi profundamente abalado pela eclosão da guerra em 1939, pela ocupação da França entre 1940-44, pela Resistência e, depois, pela Libertação. Quando então Paris, apesar das enormes dificuldades materiais do após-guerra, voltou a ser uma festa.
(*) Paulo Perdigão in Existência e Liberdade - Editora L&PM
Em meio à tormenta ideológica
O fim do conflito mundial abriu as portas para uma guerra de outro tipo. Encerrada a fase quente, a dos bombardeios e foguetes, o Ocidente e o Leste, ex-aliados, engalfinharam-se numa guerra fria. Foi um enfrentamento de ideologias, de propaganda e de idéias que fez com que, pelos quase meio século seguinte, a intelectualidade ocidental se posicionasse uns a favor dos Estados Unidos e seus aliados, outros defensores da União Soviética e do comunismo.
Na França, o cenário ideológico não se limitou apenas a divisão entre os partidos conservadores e liberais-democráticos de um lado, contra os socialista e comunista do outro, também no campo das idéias a inteligência teve que optar entre o Neotomismo (representado pelo filósofo católico Jacques Maritain), respaldado pela Igreja Católica(ligada estreitamente ao Papado), e pelas classes conservadoras em geral, e o Marxismo (doutrina ligada ao Partido Comunista francês atrelado à União Soviética), sustentado pela corporação sindical.
Duas potências que, por toda a França, não cessavam de se digladiar diariamente pelos jornais e pelos semanários, em ensaios e livros.
Buscando uma posição intermediária entre aqueles dois gigantes, um que se encerrava no Juízo Final e o outro na Revolução Social, o pequeno grupo que cercava Sartre e Simone decidiu ter uma revista própria, fundando para tanto, com apoio da editora Gallimard, o Le Temps Moderne (Tempos Modernos), em 1945.
Manifestando distância entre o catolicismo e o marxismo, o existencialismo, filosofia da liberdade, foi o caminho encontrado por eles naquela situação de um mundo dividido.
Classe média e existencialismo
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Os marxistas, como Georgy Luckás, acusavam o existencialismo de ser "uma ideologia pequeno-burguesa". Tinham razão. Quem se deixou fascinar pelas exposições das idéias de Sartre foi exatamente a gente da classe média, profissionais liberais, artistas, intelectuais, pessoas independentes de um modo geral, que não se identificavam mais com os valores tradicionais do catolicismo em que a maioria deles havia sido criada e educada.
Além disso, as instituições católicas, Igreja e Ordens Religiosas, haviam dado seu apoio ao regime colaboracionista do Marechal Petain (1940-1944) que caíra no opróbrio depois da derrota do nazi-fascismo em 1945. Por outro lado, devido sua condição social, não podiam igualmente se sentirem atraídas pelo marxismo ou pelo comunismo stalinista visto seu caráter coletivista e dogmático.
A obra de Sartre abria as portas para uma outra perspectiva, descolada das convenções e das limitações comportamentais burguesas do seu tempo. Neste sentido, avulta a importância da obra de Simone de Beauvoir que explorou literariamente os novos paradoxos surgidos da emancipação da classe média ilustrada dos valores tradicionais.
Ela, tal como Marcel Proust, fez daqueles que a cercavam – os personagens reais que circulavam no ambiente boêmio e artístico de Paris - a matéria-prima para grande parte das suas novelas e tema dos seus ensaios.
Eram as dúvidas deles, daquela pequena camada intelectualizada, cosmopolita e fluente, que uma das suas personagens chamou de "a coalizão", as dúvidas morais e embates ideológicos em que se envolviam, os casos sentimentais que os perturbavam, as amizades e desacertos deles, quem mereceram-lhe a atenção.
Sobre tudo aquilo Simone tratou com muito brilho, numa prosa fluente e sem interrupções, no seu premiado livro Les Mandarins (Os Mandarins), prêmio Goncourt de 1954.
O desafio deles concentrava-se em romper com as "convenções burguesas”, entendidas como mesquinhas e restritivas das potencialidades individuais. Ser existencialista era fazer o que se quisesse, "ainda que não a esmo", sem ficar preso ao disque-disque das pessoas ao redor. O padre e o "burguês" estavam na linha de frente do que desprezavam, bem mais do que ao comissário comunista.
Todavia, Simone não se deteve somente nisso, pois percebera que a situação das mulheres requeria um outro tipo de atenção que até então não conquistara o espaço merecido nas preocupações dos movimentos partidários modernos. Exceção feita aos militantes socialistas, sempre mais abertos e sensíveis ao tema da igualdade feminina ("o proletariado de saias").
Havia ainda um nó amargo no passado dela, de moça católica bem-comportada, que datava do tempo em que perdera Elizabeth Mabille, sua melhor amiga Zaza, cuja morte precoce, vitimada por meningite, ela responsabilizara a insensibilidade convencional e as exigências familiares da época.
Pairava algo mais sobre a situação um tanto estigmatizante da mulher que a maioria dos homens, independentemente da simpatia filosófica, ideológica ou partidária que se afiliassem, não percebia ou fingia não querer ver.
Do Eterno Feminino à Condição Feminina
Com total independência de Sartre, Simone dedicou-se por alguns anos do após-guerra a uma intensa e detalhada pesquisa em bibliotecas recolhendo material para o seu ensaio intitulado Le Deuxième Sexe, O Segundo Sexo, dois volumes de mil páginas aparecido em maio de 1949, e que lhe deu projeção quase que universal. A intenção dela era demonstrar que apesar da enorme evolução ocorrida ao longo do século XX, perdurava sobre o sexo feminino uma posição de subordinação e inferioridade que bem poucos aceitavam em denunciar ou condenar. Inclusive as próprias mulheres.
O que lhe valeu, logo que a obra chegou ao público, ser alvo de críticas que explodiram de todos os lados, taxando-a de "sufragete da sexualidade" e de "amazonas existencialista". Ou ainda de ter escrito um "manual de egoísmo erótico" e de ter exposto "audaciosas pornografias" que ostensivamente manifestavam o "egotismo sexual" dela.
Não importava a época ou o período histórico, fosse o antigo ou o moderno, para Simone permanecia a idéia do "eterno feminino", isto é, um conjunto de características imutáveis que eram impostas às mulheres pelo mundo masculino. Elas variavam em atribuir a elas permanentes "pendores naturais" para o matrimônio e a maternidade, até os abertamente ofensivos que as acusavam de desempenharem papéis menos louváveis que punham os homens a perder, fossem como sedutoras, feiticeiras ou bruxas.
Denunciou a existência da distinção feita entre o ser feminino, situação biogenética determinada pela natureza, e a mulher, uma construção idealizada de cada época histórica que, por assim dizer, "escalpe" uma mulher adequada aos ideais e interesses masculinos. Em geral pouco concedendo dela ir além de ser esposa e mãe e nada mais.
Daí o sentido da sua célebre afirmação que correu o mundo desde então: "Não nascemos, mas sim nos tornamos mulher". Para ela era evidente a necessidade de superar o "eterno feminino", visão que engessava a mulher, para a "condição feminina", momento de denúncia que mostrava a situação de opressão que elas viviam há séculos e que apesar dos avanços da sociedade moderna ainda estavam longe de serem abolidos.
Simone de fato, especialmente no primeiro volume do seu ensaio, que é acima de tudo um magnífico estudo sócio-antropológico e histórico da situação Firmina através dos tempos, fez um minucioso requisitório de tudo aquilo que ao longo da história assacaram contra elas, frases dos mais diversos escritores, poetas e filósofos, desde os gregos e romanos.
De Hesíodo ("quem se confia a uma mulher, confia-se a um ladrão"), passando pelo bispo Bossuet ("Eva não passava de uma parcela de Adão e de uma espécie de diminutivo"), até os escritores católicos do século XX, demonstrando como, ao longo da história, significativos nomes do universo masculino cerravam fileiras na tarefa de deprecia-las.
Até mesmo Jean-Jacques Rousseau, homem dado à mansidão e ao culto à bondade natural, reiterou que a instrução delas "deve ser relativa ao homem. A mulher é feita para ceder ao homem e suportar-lhe as injustiças".
Numa passagem famosa ela então registrou: "Os dois sexos jamais partilharam o mundo da igualdade, e hoje em dia ainda, se bem que a condição evoluiu, a mulher ainda fica muito atrás. Praticamente em nenhum país a sua posição legal é idêntica a do homem, havendo sempre uma desvantagem considerável. Ainda que os seus direitos sejam abstratamente reconhecidos, um longo hábito impede que eles se encontrem nos meios e nas expressões concretas. Economicamente, homens e mulheres constituem praticamente duas castas(...) os primeiros encontram-se em situações mais vantajosas, com os salários mais elevados, com maiores chances sobre suas concorrentes de data mais recente. Além dos poderes concretos que eles possuem, eles encontram-se revestidos de um prestígio que desde a educação infantil mantém a tradição. As atribuições do casamento assomam-se bem mais pesadas para a mulher do que para o homem(...); as servidões da maternidade reduziram-se pelo uso confessado, ou ainda clandestino, do controle dos nascimentos, mas a prática não se expandiu universalmente nem foi rigorosamente aplicada. Os cuidados das crianças e as exigências do fogão ainda são assumidas quase que exclusivamente pela mulher. Ainda que as elas trabalhem nas usinas, nos escritórios, nas faculdades, continuam a considerar que para elas o casamento é uma carreira das mais honoráveis o que as dispensa de qualquer outra participação na vida coletiva."
Bovary e Beauvoir
A infeliz Ema Bovary
Ema Bovary, a heroína trágica de Gustave Flaubert, não teve como escapar de um casamento infeliz. Sem outra alternativa que não fosse encontrar um outro amor que a arrancasse da mesmice e do enfado em que sua vida doméstica se reduzira, lançou-se em delirantes aventuras extraconjugais. Pagou muito caro por isso.
O registro da agonia que ela padeceu ao propositadamente se envenenar tornou-se uma das páginas mais dramáticas da literatura ocidental, como se o autor, juiz de uma sociedade conservadora, desejasse puni-la pela ousadia de quebrar as regras do "eterno feminino" que a forçava a ser boa esposa e mãe, para qual ela não revelara nenhuma vocação ou talento especial.
Um pequeno trecho de Flaubert é o suficiente para aclarar a situação em que sua personagem vivia cotidianamente: "...era, sobretudo à hora das refeições que ela já não agüentava mais, naquela salinha do andar térreo, com o fogão fumegando, a porta rangendo, as paredes cheias de salitre, as lajes úmidas, toda a amargura da existência se lhe afigurava servida no prato e, ao fumegar o cozido, saíam-lhe do fundo da alma outros suspiros de tédio. Carlos (o marido) era vagaroso para comer. Ema distraía-se mordendo avelãs, ou então, apoiada no cotovelo, entretinha-se, com a ponta da faca, a fazer riscos no oleado da mesa."(Madame Bovary, Editora Nova Cultural, 2002)
Poder-se-ia dizer que Ema Bovary foi uma espécie de mártir da mulher que deseja emancipar-se ou pelo menos fugir de um destino medíocre e infeliz?
Um século depois dela, ainda que não na França rural, Simone de Beauvoir, escritora e filósofa, falecida em 14 de abril de 1986, em Paris, de certo modo apresentou-se como alternativa definitiva ao triste fado de Ema Bovary, tornando-se alguém que não depositou suas expectativas apenas no casamento e na maternidade, ou em amores impossíveis que a livrassem daquilo.
Muito menos ficou fazendo riscos à mesa como a pobre suicida. Ainda que a posição assumida por ela não pudesse se tornar universal, pautou o comportamento de milhares de outras mulheres que vieram a seguir no sentido delas buscarem se realizar como profissionais bem sucedidas e totalmente emancipadas da tutela masculina, fosse a paterna ou a conjugal. Uma outra mulher surgiu desde então.
Obras de Simone de Beauvoir
Romances
A convidada (1943)
O Sangue dos Outros (1945)
Todos os Homens são Mortais (1947)
Os Mandarins (1954)
As Belas Imagens (1966)
A Mulher Desiludida (1968)
Quando o Espiritual Domina (1979)
Memórias
Memória de uma Moça Bem-comportada (1958)
A Força da Idade (1960)
A Força das Coisas (1963)
Uma Morte Muito Suave (1964)
Balanço Final (1972)
A Cerimônia do Adeus (1981)
Diário da Guerra (1990)
Cartas à Sartre I e II) (1990)
Cartas à Nelson Algren (1997)
Ensaios
Pyrrhus et Cinéas(1945)
Por uma Moral da Ambigüidade(1947)
L'Amerique au Jour le Jour (1948)
O Segundo Sexo (1949)
Deve-se Queimar Sade? (1955)
A Longa Marcha (1957)
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