terça-feira, 4 de maio de 2010
A Atualidade do filme laranja mecanica
Kubrick e A Laranja Mecânica de Burguess: Jogo de Emoções
Marcus Vinicius da Cunha
(Fonte: http://www.geocities.com/Athens/Atrium/4778/Artigos/Laranja.html)
Stanley Kubrick, recentemente falecido, tem sido foi muito comentado devido a seu último filme, De Olhos Bem Fechados, com Tom Cruise e Nicole Kidmann. Kubrick é sempre lembrado por 2001 – Uma Odisséia no Espaço, uma epopéia de ficção científica realizada em parceria com o escritor Arthur C. Clarke. O que pouca gente sabe é que esse diretor considerava A Laranja Mecânica (A Clockwork Orange, 1971) seu melhor filme – pelo menos era esta a sua opinião tempos atrás, antes de dirigir o casal Cruise-Kidmann em ardentes cenas de sexo.
A Laranja Mecânica, baseado no romance homônimo de Anthony Burguess, é de fato um filme perfeito, e vale a pena procurá-lo nas locadoras, para vê-lo ou revê-lo. Tudo nele se encaixa com perfeição – cenários, locações, figurinos, atores, fotografia e música – para criar um ambiente aparentemente distante do nosso, um mundo caótico e sombrio em que um bando de rapazes liderados por Alex (Malcolm McDowell) sai pelas madrugadas usando alucinógenos, espancando mendigos idosos e violentando mulheres, entre outros desatinos. Tudo em clima de pura diversão e sarcasmo. Usam um vocabulário eivado de expressões que só eles entendem, mas quem vê o filme, dado o recurso das imagens, logo compreende essa linguagem. Quem lê o livro precisa recorrer ao dicionário de sinônimos providenciado por Burguess, mas logo se acostuma também.
Apesar das aparências, o universo de A Laranja Mecânica é atualíssimo, pois espelha a realidade de nossos centros urbanos repletos de gangs, cada qual com suas gírias, seus delitos violentos e o total desprezo por valores tradicionais. Respeito, solidariedade e cooperação não são as suas bandeiras. É uma realidade que reflete a ausência de controle sobre o comportamento dos jovens nos dias de hoje: as instituições sociais – família, igreja e escola – não os absorvem, deixando-os à mercê de seus instintos mais agressivos e egoístas. É com sentimentos desse tipo que acompanhamos o filme, tomados por uma profunda ira contra as maldades cometidas por Alex e seus amigos. Como na vida real, ansiamos por uma punição exemplar.
Numa de suas investidas, o bando comete um homicídio, o que leva o líder Alex para uma casa de detenção e, dali, para um programa de reeducação manipulado por um político astuto. O programa visa afastar o jovem de tudo aquilo que até então o excitava – sexo e violência – e consiste em obrigá-lo a assistir a cenas em que esses conteúdos estão presentes. A reação de Alex, ao invés de ser de alegria, é de profundo mal-estar, uma vez que os reeducadores o mantém sob o efeito de drogas que provocam náuseas e vômitos.
O fundamento desse programa é a teoria do condicionamento, elaborada pelo fisiologista russo I. Pavlov no início do século XX e desenvolvida mais tarde por J. B. Watson e B. F. Skinner, psicólogos norte-americanos que criaram o paradigma comportamentalista na Psicologia. Estímulos agradáveis – no caso de Alex, sexo e violência – são associados a respostas desagradáveis, como as que são induzidas no organismo do rapaz pelos fármacos. As imagens e a reação física associam-se de tal maneira que mais tarde, mesmo sem a ação das drogas, Alex irá sentir-se mal sempre que presenciar atos de conotação violenta e/ou sexual.
Em A Laranja Mecânica temos um excelente exemplo de como utilizar certos conhecimentos da Psicologia para o exercício do controle social. No filme, os cientistas reeducadores aplicam a punição que o espectador almeja desde os momentos iniciais do espetáculo. Talvez pudéssemos fazer o mesmo com todos os delinqüentes que assombram as noites das nossas cidades. Destruiríamos seu ímpeto agressivo e garantiríamos a tranqüilidade das famílias e dos mais fracos, preservando a ordem social.
Mas Kubrick, seguindo fielmente a história de Burguess, joga com nossas emoções. Alex passa a sentir náuseas também ao ouvir a Nona Sinfonia de Beethoven, música pela qual nutria verdadeira adoração. Por mero acaso, as cenas detestáveis que Alex foi obrigado a assistir durante o processo de condicionamento eram embaladas, infelizmente, pela Nona de Beethoven. A repugnância física ficou associada não apenas a sexo violento e violência gratuita, mas também a um dos tesouros de nossa cultura. Destruiu-se, assim, o único vínculo que mantinha o jovem líder vinculado aos valores de nossa civilização. Mais ainda, em um momento de extremado sofrimento, Alex atira-se do alto de um prédio em busca do suicídio.
Não era isso o que desejávamos – sofre e arrepende-se o espectador! Queríamos o rapaz punido, sim, mas recuperado, reintegrado à comunidade. Quem sabe ele poderia conhecer uma boa moça, casar-se, ter filhos, um emprego... Pois é esse o destino de Alex sugerido no livro que deu origem ao filme. O rapaz, que sobrevive ao atentado contra a própria vida e fica livre do condicionamento a que fora submetido, observa um casal de namorados e almeja ser como eles, um dia, ter uma vida normal. Podemos interpretar esse final como uma mensagem de Burguess sobre a história que nos conta: as atitudes de Alex e sua gang não passavam de loucuras da adolescência, agora superada. A Laranja Mecânica de Burguess seria portanto não uma crítica à desordem social que impede os jovens de terem melhor perspectiva de vida, mas uma história sobre a natural transição da adolescência para a maturidade.
Mas não é esse o final dado por Kubrick. O diretor interrompe a narrativa de Burguess no momento em que Alex, em recuperação no hospital, recebe a visita do político astucioso que comandou a experiência de condicionamento com o intuito de utilizá-la para fins eleitorais, como se fosse a solução para a violência imperante na sociedade. Dada a repercussão negativa do caso diante da opinião pública, o político propõe então que Alex aceite tornar-se seu garoto-propaganda. Abraçado ao político, o rapaz acena para os jornalistas, sorri de modo sarcástico enquanto tem um devaneio: imagina-se fazendo sexo com uma mulher em um cenário paradisíaco, cercado de nuvens tênues, emoldurado por gentlemen e ladies que o admiram. Percebe que está curado, finalmente!
Ao renegar o final dado por Burguess para a história de Alex, Kubrick nos pergunta se era isso o que queríamos. Queríamos Alex recuperado? Pois o temos! O ex-líder de gang tornou-se, ele também, um político astucioso, um homem que sabe domesticar sua sexualidade e agressividade. Seu sorriso hipócrita nos diz que no fundo ele continua o mesmo, capaz de cometer as mesmas atrocidades, apenas que agora o fará de modo a ser aceito nos ambientes mais sofisticados da sociedade.
Ao jogar com nossas emoções, Kubrick nos pergunta sobre a sociedade que almejamos e sobre os meios que imaginamos empregar para consegui-la.
(*) Este artigo foi publicado no Jornal da Enciclopédia de Filosofia da Educação
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